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DESENCANTADOS
(Renato Suttana)
Houve uma época em que as
pessoas se diziam encantadas por se conhecerem umas às
outras. Essa época já passou, ao que parece, e o costume
se esgotou não tanto porque as nossas maneiras de hoje
sejam mais rudes e intolerantes, mas porque,
desencantados, a idéia de nos encantarmos com o que quer
que seja se tornou extremamente aborrecida. Quem se diz
encantado por ter conhecido outra pessoa corre o risco
de parecer antiquado. E, a não ser que admita que esse
encantamento contém em si uma boa dose de desencanto,
correrá também o risco de dar a entender, no instante do
cumprimento, que está à espera das maiores decepções –
quem sabe até preparado para elas ou a desejar que
aconteçam. Só assim poderá escapar à suspeita –
inevitável – de que, ao dizer-se encantado por conhecer
alguém, acabou ultrapassando os limites da discrição e
tomando o outro por aquilo que ele não é.
Dizer-se encantado, depois de
séculos de ciência e de exorcismo dos velhos fantasmas
da cultura, contém um grão de ironia e, suporíamos
mesmo, de insensatez. O fato é que já não nos encantamos
facilmente, nem mesmo quando lemos livros sobre bruxos
ou histórias de mágicos. E, quando vamos ao cinema,
estamos preparados para admitir que não seremos
enganados, distinguindo, com olho excessivamente
crítico, as trucagens e os malabarismos de cena que
visam por certo a produzir em nós o efeito do
encantamento. Como nos encantaríamos, se sabemos que,
ali, o preço do susto ou do espanto é
mais ou menos proporcional ao que pagamos para assistir
à sessão?
Só alguém que fosse vítima de
um exagerado otimismo poderia admitir que há aí qualquer
coisa de genuíno. Acostumados ao desencanto diário (que
se distingue – admitimos – do desencantamento, mas não
entraremos em detalhes sobre tal questão), é provável
que a idéia de que ainda podemos nos encantar nos
encante mais do que o encantamento em si próprio. Porém
causaria espécie ouvir alguém dizer que está encantado
com a possibilidade de encantar-se e que o
encantamento em si lhe é indiferente, até porque ainda
não chegamos a esse grau de refinamento em nosso modo
sutil de ver as coisas. Preferimos, na maioria das
vezes, deduzir que quem se encanta ou se diz encantado
está apenas mentindo, e pode ser que por esse motivo o
emprego da palavra em ocasiões de encontro com
desconhecidos tenha caído em desuso. Dizer-se encantado
por conhecer outra pessoa ou por ter sido apresentado a
ela é, por assim dizer, exagerar na cortesia, e então
preferimos o uso de uma interjeição discreta e
impessoal, pois dará a entender que ainda queremos ser
honestos.
A origem do aborrecimento está
em que nosso ceticismo tem raízes profundas. E nosso
senso de verdade não vai ao extremo de nos forçar a
dizer, ao conhecermos alguém, que nos sentimos desencantados
com isso – o que seria mais verdadeiro, mas
provavelmente soaria menos polido. As interjeições
impessoais têm a vantagem de não nos comprometerem, ao
mesmo tempo em que salvaguardam nossa consciência.
Elevando de repente uma indispensável barreira de bom
senso entre nós e o desconhecido, acabam por lisonjear a
ambas as partes, pois é provável que do outro lado se
esteja a pensar a mesma coisa. E só mesmo por exagero,
por um excesso de honestidade que não esconde a
descortesia, ousaríamos dizer que por amor do outro
chegamos até o ponto de perdermos a cabeça ou a
honestidade.
Com certeza, isso não implica
que já não possamos crer genuinamente no
encantamento. Mas crer é uma coisa e encantar-se de fato
é outra, muito diferente. Quanto a este aspecto, pode
ser que a contigüidade entre as duas idéias ou certa
confusão que nos leva a tomar uma pela outra interfiram
no caso, conduzindo muita gente a pensar que ao dizer-se
encantada em conhecer os outros esteja sendo sincera ou
que, pelo menos, esteja a dizer a verdade. A
sinceridade, logo se vê, ainda teria de ser provada numa
etapa posterior.
Cabe suspeitar que, fora de
moda, ou irremediavelmente perdida numa região do
passado onde as velharias não param de acumular-se, a
expressão apenas pode despertar em nós um sentimento de
inadequação. E essa inadequação tem a ver, antes de
tudo, com o sentimento correlato de que já não nos
deixamos encantar – de que isso é coisa de uma época
remota.
jun./2007
(Leia
também Adendos
e Espinhos - livro de
crônicas de Renato Suttana)
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