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DE CASULO E
METAMORFOSE
(Renato Suttana)
Podemos até não gostar dos insetos. Achamos feias
algumas lagartas e mariposas. Às vezes, as borboletas
nos agradam, pelo colorido e delicadeza de suas asas,
pelo intrincado de seus padrões. No entanto em geral nos
aborrecemos quando as traças invadem nossas bibliotecas
ou quando os cupins arruínam as estruturas do telhado e
as formigas fazem montinhos de terra em nossos gramados.
Entramos em guerra com os bichos, porque sabemos que, se
não os detivermos, eles nos causarão prejuízos, tornarão
nossas vidas mais difíceis e nosso cotidiano mais
complicado do que já é. Por isso não hesitamos em
aplicar inseticida sobre os mosquitos e as baratas, e
abusamos dos pesticidas para controlar a voracidade das
pragas que assolam as plantações — e que,
insistentemente, teimam em invadir nossos quintais e
inviabilizar nossas colheitas. Ou eles ou nós — este é o
lema. E assim levamos a vida, alimentando cotidianamente
uma repugnância que, em seu extremo, alicia também o
nosso imaginário: quando damos corpo aos nossos
devaneios acerca de monstros alienígenas, por exemplo,
invariavelmente os figuramos na forma de insetos ou
moluscos gigantes, que assim devem aparecer, portanto, e
atuar no teatro da vida como os nossos grandes inimigos.
A vida, porém, segue o seu ritmo.
Recentemente, uma lagarta de aspecto suspeito, grossa e
coberta de pelos que lhe davam o aspecto de um cacto
mole, rastejante, subiu por uma das traves metálicas de
sustentação da grade fronteiriça da casa onde moro e ali
começou a tecer um casulo em volta de seu corpo. Como
foi parar lá é que não sei, mas imagino que, tendo
surgido de uma árvore próxima, conseguiu atravessar —
sem que alguma ave ou outro inseto a devorasse — o
trecho de calçada que separa o tronco da árvore e a
grade da entrada. Com o risco também de que um pássaro a
apanhasse durante a subida (vendo nela um bom petisco
com que se alimentaria para mais um dia de faina),
cobriu-se lentamente com uma malha acinzentada de fios
que aos poucos foi se encorpando até se converter num
envoltório opaco, a ocultá-la por inteiro. O aspecto
final desse trabalho assemelhou-se a um calo ou
protuberância cinzenta surgido na superfície do metal,
ou a uma espécie de remendo canhestro que alguém tivesse
aplicado ali para ocultar algum defeito, que sei eu?
Seja como for, não interferi nesse processo, e até
convidei minha filha para apreciar o espetáculo — ela
que nunca tinha visto uma lagarta executando o trabalho
de preparar a sua própria transformação em inseto
adulto, isto é, de se transformar em borboleta ou
mariposa.
Cumprida a etapa inicial — de
construção do casulo —, passaram-se semanas, e
nenhum outro movimento se verificou. Depois da árdua
atividade inicial, era como se não houvesse mais vida
ali dentro ou como se, em vez de um casulo, a lagarta
tivesse tecido em torno do seu corpo uma espécie de
túmulo prematuro. Para quem, como eu, não tem
experiência com insetos, isso parecia preocupante e dava
o que pensar, pois fazia crer que a lagarta estivesse
realmente morta em seu pequeno túmulo. Era possível, por
exemplo, imaginar também que a transformação se
desenrolasse mais rapidamente, com a lagarta construindo
o casulo num dia e eclodindo em borboleta no dia
seguinte. Mas, pelo visto, não era assim que as coisas
se passavam: cumprida a tarefa e concluído o casulo,
havia que esperar para que o tempo fizesse o seu
trabalho. Cumpria deixar que o ciclo se desenrolasse
totalmente ao longo dos dias e das horas (que, qualquer
que fosse a nossa expectativa, tinham a sua própria
medida e não aceitavam intervenção de pessoa humana ou
qualquer outro bicho para se aperfeiçoar) — até que
viesse a hora de eclodir o inseto formado.
Esperei pacientemente, estimulado
pela curiosidade de ver que tipo de inseto surgiria do
casulo. Muito embora chegasse a suspeitar, às vezes, que
já não houvesse vida lá dentro (como somos fracos e
ingênuos quando se trata de esperar pela natureza!),
cheguei também a supor que o local e as condições em que
o casulo tinha sido construído não eram propícios à
formação do inseto adulto ou que outra coisa pudesse
interferir: algum incidente inesperado que interromperia
a metamorfose. Quanto a isso, não sei se pássaros têm
curiosidade por casulos ou se é de seu feitio interferir
nas metamorfoses para engolir insetos adormecidos, mas
esta era outra possibilidade a considerar. Um pássaro
poderia aparecer e dar fim ao assunto. Poderia vir e
destruir a delicada armação, impedindo que eu
presenciasse, pela primeira vez em minha vida, o belo
fenômeno de eclosão de uma borboleta em seu próprio
casulo — coisa que estamos acostumados a ver somente em
documentários de televisão. Disposto, portanto, a
esperar, torci também para que ninguém (uma criança
curiosa, um adulto desastrado) tivesse a má ideia de
remover o estranho montículo de fios que se prendia à
coluna da grade, semelhante, como disse, a um defeito ou
uma ferida, e tão visível e exposto, naquela situação de
fragilidade, que uma simples mudança no clima pareceria
capaz de desmantelá-lo.
Hoje, porém, depois de muita
espera, reparei por acaso que o casulo se rompera e que
uma pequena forma negra, de aspecto brilhoso e
tonalidade cambiante (e não obstante delicado) começara
a eclodir, rompendo o casulo pela parte de cima. Não
havia movimento, nem havia sinais de vida. Havia apenas
a tonalidade preta e luzidia, a sugerir o aparecimento
de uma coisa fresca, nova, mas que, por alguma razão,
podia ter sido interrompida precocemente, tal como se o
bicho não tivesse forças para ir além do primeiro
impulso de alcançar a luz do dia. Alguma coisa
acontecera durante o percurso, ou o processo se
completaria? Por certo, ainda há que aguardar, até que
todo o ciclo se realize e até que o animal inteiro venha
à luz. E tudo isso exigirá paciência e sobretudo
demandará tempo. Se eu tivesse tomado, pois, há alguns
dias — quando presenciei os momentos iniciais da
transformação —, a decisão de mandar pintar o portão e a
grade, o casulo certamente teria sido removido e a
metamorfose seria interrompida ou, religiosamente
falando, teria sido profanada. Não haveria, portanto, a
transformação da feia lagarta de pelos negros no inseto
recém-surgido, e um dos mais estranhos e intrigantes
fenômenos da vida — a metamorfose das lagartas e larvas
em insetos adultos — teria sido frustrado em seu começo.
Era preciso aguardar o término do
ciclo, foi tudo o que eu soube. E agora me ocorre que
nossa vida cheia de trabalhos e preocupações não é
passível desse tipo de coisas: corremos de um lado para
o outro, abrimos caminho à força entre os eventos
diurnos; sobretudo, não temos tempo a perder com
assuntos de feias lagartas que se transformam em
borboletas. Quando muito, podemos tolerá-las, vê-las
como curiosidades ocasionais ou temas para documentários
de tevê a que assistimos em começos sonolentos de noites
ou em finais de semana. No entanto jamais as enxergamos
como fatos que se relacionem com nossas preocupações
cotidianas: somos sérios, sisudos e ocupados demais para
desperdiçar nosso escasso tempo com semelhantes
ninharias.
3-7-2018
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