O MUNDO EM QUE NADA SE
RESOLVE
(E. M. Cioran)
Há alguma coisa na terra de que não se
pode duvidar além da morte, a única certeza deste mundo? Duvidar e
continuar vivendo – eis um paradoxo, embora não um paradoxo trágico,
desde que a dúvida é menos intensa, menos consumptiva do que o
desespero. A dúvida abstrata, da qual se participa de maneira
parcial, é mais freqüente, enquanto do desespero se participa total
e organicamente. Nem mesmo as formas mais orgânicas e sérias da
dúvida atingem a intensidade do desespero. Comparado ao desespero, o
ceticismo se caracteriza por um certo volume de diletantismo e de
superficialidade. Posso duvidar de tudo, posso sorrir com desdém
para o mundo, mas isso não me impedirá de comer, de dormir
pacificamente ou de me casar. No desespero, cujas profundidades só
podemos sondar experimentando-o, tais ações são possíveis apenas com
um grande esforço. Assim, um homem genuinamente desesperado não pode
esquecer a sua própria tragédia: sua consciência preserva a
atualidade dolorosa de seu tormento subjetivo. A dúvida é ansiedade
quanto a problemas e coisas e tem suas origens na natureza insolúvel
de todas as grandes questões. Se tais questões pudessem ser
resolvidas, os céticos reverteriam para estados mais normais. A condição do desesperado,
a esse respeito, é totalmente diferente: se todos
os problemas se resolvessem, ele não se tornaria menos ansioso, já
que sua ansiedade emerge de sua própria existência subjetiva. O
desespero é o estado no qual a ansiedade e a inquietude são
imanentes à existência. Ninguém, no desespero, sofre com
“problemas”, mas com o seu próprio tormento e fogo interior. É uma
lástima que nada possa ser resolvido neste mundo. No entanto, nunca
houve, nem nunca haverá, alguém que se suicidasse por essa
razão. E o mesmo vale para o poder que a ansiedade intelectual
exerce sobre a ansiedade total de nosso ser! É por isso que prefiro
a vida dramática, consumida por fogos íntimos e torturada pelo
destino, à vida intelectual, enleada em abstrações que não engajam a
essência de nossa subjetividade. Desprezo no pensamento abstrato a
ausência de riscos, de loucura, de paixão. Quão fértil e vivo é o
pensamento passional! O lirismo o alimenta como sangue bombeado para
um
coração! É interessante observar o processo dramático pelo qual os
homens, originalmente preocupados com problemas abstratos e
impessoais, tão objetivos a ponto de se esquecerem de si mesmos,
passam a refletir sobre sua própria subjetividade e sobre questões
existenciais, quando experimentam a doença e o sofrimento. Os homens
ativos e objetivos não dispõem de suficientes recursos interiores
para fazer do seu próprio destino um problema interessante. É
necessário descer por todos os círculos de um inferno íntimo para
converter o destino de alguém num problema subjetivo e também
universal. Se não fores reduzido a cinzas, então serás capaz de
filosofar liricamente. Somente quando não te dignas sequer de
desprezar este mundo de problemas insolúveis alcançarás uma forma
superior de existência pessoal. E isso acontecerá não porque tens
qualquer valor especial ou qualquer excelência, mas porque nada te
interessa para além de tua própria agonia pessoal.
(On the heights of
despair –
Tradução de Renato Suttana)
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