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Max Ernst, Figura humana

 

A FUGA DA CRUZ

 

(E. M. Cioran)

 

Não gosto de profetas mais do que gosto de fanáticos que nunca duvidaram de sua missão. Meço o valor dos profetas pela sua habilidade em duvidar, pela freqüência de seus momentos de lucidez. A dúvida os torna verdadeiramente humanos, mas a sua dúvida é mais impressionante do que a das pessoas comuns. Tudo o mais neles é apenas absolutismo, pregação, didatismo moral. Querem ensinar os outros, proporcionar-lhes salvação, mostrar-lhes a verdade, mudar os seus destinos, como se as verdades deles fossem melhores do que as verdades alheias. Só a dúvida pode distinguir os profetas dos maníacos. Mas já não é tarde demais para que duvidem? Aquele que pensou ser o filho de Deus apenas duvidou no último momento. Cristo duvidou realmente não na montanha, mas na cruz. Estou convencido de que na cruz Jesus invejou o destino dos anônimos e, pudesse tê-lo feito, haveria se retirado para o canto mais obscuro do mundo, onde ninguém lhe implorasse por esperança ou salvação. Posso imaginá-lo a sós com os soldados romanos, pedindo a eles que o apeassem da cruz, que arrancassem os cravos e o deixassem escapar para onde os ecos do sofrimento humano não o alcançassem mais. Não porque subitamente cessasse de crer em sua missão - era iluminado demais para ser um cético -, mas porque a morte pelos outros é mais difícil de suportar do que a própria morte. Jesus sofreu a crucificação, porque sabia que suas idéias só poderiam triunfar mediante seu próprio sacrifício.

 

 As pessoas dizem: para acreditarmos em ti, precisas renunciar a tudo o que é teu e também a ti mesmo. Querem tua morte como garantia da autenticidade de tuas crenças. Por que admiram as obras escritas com sangue? Porque essas obras lhes poupam qualquer sofrimento, ao mesmo tempo em que preservam a ilusão do sofrimento. Querem enxergar o sangue e as lágrimas por trás de tuas linhas. A admiração da massa é sádica.

 

Não tivesse Jesus perecido na cruz, e a cristandade não haveria triunfado. Os mortais duvidam de tudo, exceto da morte. A morte de Cristo foi para eles a prova cabal da validade dos princípios cristãos. Jesus poderia ter escapado facilmente à crucificação ou poderia ter se rendido ao demônio! Aquele que não fez um pacto com o demônio não deveria viver, porquanto o demônio simboliza a vida mais do que Deus. Se tenho do que me lamentar, é que o demônio raramente me tentou... mas também Deus não me amou. Os cristãos ainda não entenderam que Deus está mais distante deles do que eles de Deus. Posso perfeitamente imaginar a Deus se aborrecendo com os homens, que sabem apenas implorar, exasperado com a trivialidade de sua criação, igualmente desgostoso tanto do céu quanto da terra. E o vejo em fuga para o nada, tal como Jesus escapando da cruz... O que teria acontecido se os soldados romanos houvessem atendido à súplica de Jesus, se o tivessem descido da cruz e o tivessem deixado escapar? Certamente ele não iria para outra parte do mundo a fim de rezar, mas apenas para morrer, sozinho, fora da simpatia ou das lágrimas do povo. E, mesmo supondo que, pelo seu orgulho, ele não implorou por liberdade, acho difícil crer que esse pensamento não o tenha obsedado. Ele deve ter acreditado verdadeiramente que era o filho de Deus. Não obstante sua crença, ele não teria como não duvidar ou não ser tomado pelo medo da morte na hora de seu sacrifício supremo. Na cruz, Jesus teve momentos em que, se não duvidou de que era o filho de Deus, se arrependeu disso. Aceitou a morte unicamente para que suas idéias triunfassem.

 

Pode muito bem ser que Jesus fosse mais simples do que o imagino, que tivesse menos dúvidas e menos pesares, pois duvidou de sua origem divina apenas na hora da morte. Nós, por outro lado, temos tantas dúvidas e arrependimentos que nenhum de nós, sequer, ousaria sonhar ser o filho de um deus. Odeio Jesus pelas suas pregações, pela sua moralidade, pelas suas idéias e sua fé. Amo-o pelos seus momentos de dúvida e pesar, os únicos realmente trágicos de sua vida, embora não os mais interessantes nem os mais dolorosos, pois, se tivéssemos de julgar pelos sofrimentos, quantos outros antes dele não teriam sido mais dignos de serem chamados de filhos de Deus!

 

(In: On the heights of despair - tradução de Renato Suttana)

 

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