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ODISSÉIA DO RANCOR

 

(E. M. Cioran)

 

[...] Por mais alto que nos elevemos, permanecemos prisioneiros de nossa natureza, de nossa queda original. Os homens com grandes desígnios, ou simplesmente talentosos, são monstros, soberbos e hediondos, que dão a impressão de estar planejando algum crime terrível; na realidade, preparam sua obra... trabalham sorrateiramente nela, como malfeitores: não têm que derrubar todos aqueles que seguem o mesmo caminho que eles? Nos agitamos e produzimos para esmagar os seres ou o Ser, os rivais ou o Rival. A qualquer nível, os espíritos se guerreiam, se comprazem e chafurdam no desafio: os próprios santos se invejam e se excluem, como o fazem, aliás, os deuses, como provam suas rixas perpétuas, flagelo de todos os Olimpos. Aquele que aborda o mesmo domínio ou o mesmo problema que nós atenta contra nossa originalidade, contra nossos privilégios, contra a integridade de nossa existência, nos despoja de nossas quimeras e de nossas oportunidades. O dever de derrubá-lo, de arrasá-lo, ou pelo menos de vilipendiá-lo, adquire a forma de uma missão, e mesmo de uma fatalidade. Só nos é agradável aquele que se abstém, que não se manifesta de nenhuma maneira; isso enquanto não se transforme em modelo: o sábio reconhecido excita e legitima a inveja. Mesmo um vagabundo, se se distingue em sua vagabundagem e brilha nela, corre o risco de desonrar-se: atrai demasiada atenção sobre si... O ideal seria uma desaparição bem dosada. Ninguém o consegue.

 

Só se adquire a glória em detrimento dos outros, daqueles que também a buscam; até a reputação se obtém ao preço de inúmeras injustiças. Aquele que saiu do anonimato ou que se empenha em sair, prova que eliminou todo escrúpulo de sua vida, que triunfou sobre sua consciência, se é que algum dia a teve. Renunciar a seu nome é condenar-se à inatividade; apegar-se a ele é degradar-se. É preciso rezar ou escrever preces ? Existir ou expressar-se? O que é certo é que o princípio da expansão, imanente à nossa natureza, nos faz olhar os méritos dos outros como uma usurpação dos nossos, como uma contínua provocação. Se a glória nos é vedada, ou inacessível, acusamos aqueles que a alcançaram porque pensamos que a obtiveram nos roubando: ela nos cabia de direito, nos pertencia, e sem as maquinações desses usurpadores teria sido nossa. "Bem mais que a propriedade, é a glória que é um roubo", ladainha do amargurado e, até certo ponto, de todos nós. A volúpia de ser desconhecido ou incompreendido é rara; no entanto, pensando bem, ela não equivale ao orgulho de haver triunfado sobre as vaidades e as honras? Ao desejo de um renome inabitual, ao orgulho de uma celebridade sem público? É que constitui a forma suprema, o auge do apetite de glória.

 

A palavra não é demasiado forte: trata-se realmente de um apetite, que tem suas raízes em nossos sentidos e que responde a uma necessidade fisiológica. Para afastar-nos dele e vencê-lo, deveríamos meditar sobre nossa insignificância até adquirir o sentimento vivo dela, sem nenhuma voluptuosidade, pois a certeza de não ser nada conduz, se não se tem cuidado, à complacência e ao orgulho: não se percebe o próprio nada, não se detém nele, sem apegar-se a ele sensualmente... Há um certo prazer em denunciar obstinadamente a fragilidade da felicidade; da mesma forma, quando se professa desprezo pela glória, não se ignora, com isso, o desejo de obtê-la, se a idolatra mesmo ao proclamar sua inanidade. Desejo odioso sem dúvida, mas inerente a nossa organização; para extirpá-lo, seria preciso condenar a carne e o espírito à petrificação, rivalizar em apatia com o mineral, esquecer depois os outros, eliminá-los de nossa consciência, pois o simples fato de sua presença, radiante e satisfeita, desperta nosso espírito mau que nos manda exterminá-los e sair de nossa obscuridade apesar de seu brilho.

 

Detestamos aqueles que "escolheram" viver na mesma época que nós, que correm a nosso lado, que entravam nossos passos ou nos deixam para trás. Em termos mais claros: todo contemporâneo é odioso. Nos conformamos com a superioridade de um morto, jamais com a de um vivo, cuja simples existência constitui para nós uma censura e uma acusação, um convite às vertigens da modéstia. Que tantos semelhantes nos ultrapassem é uma evidência intolerável que esquivamos nos arrogando, por uma astúcia instintiva ou desesperada, todos os talentos e atribuindo-nos a vantagem de ser únicos. Sufocamos perto de nossos êmulos ou de nossos modelos: que alívio diante de suas tumbas! O próprio discípulo só respira e se emancipa com a morte do mestre. Todos nós, enquanto existimos, invocamos com nossos desejos a ruína daqueles que nos eclipsam com seus dons, com seus trabalhos ou com suas façanhas, e esperamos, ansiosamente, com avidez, seus últimos momentos. Alguém se eleva, em nosso setor, acima de nós, e é razão suficiente para que desejemos nos ver livres dele: como perdoar-lhe a admiração que nos inspira, o culto secreto e doloroso que lhe consagramos? Que desapareça, que se afaste, que morra enfim, para que possamos venerá-lo sem dilaceramento, sem amargor, para que cesse nosso martírio! [...]

 

(História e utopia. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 99. p.83-85)

 

 

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