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Odilon Redon

 

CADERNO DO SILÊNCIO

 

(Renato Suttana)

 

para Rafael Rocha Daud

 

 

I

 

Vago, e não paro, e não posso parar – e o silêncio gelado da noite me perpassa, como perpassaria uma grande transparência, um grande ar que estivesse ali, à espera; mas sei que nada conheço da transparência, que tudo em mim é complicação e desvio, que marcho sozinho em direção a um país que não conheço e que sou eu mesmo esse país: passagem, caminho, propiciação e obstáculo, porta a bater num vasto cômodo que se abre para os corredores de um labirinto. Estou e não estou – estou e não estou parado no limiar desse palácio de onde os nobres há muito se retiraram e onde reina uma quietude de deserto e fadiga, um vasto cansaço do qual parecem participar as próprias paredes, as colunas, os ornatos e os frisos, os vitrais que o tempo e a negligência despedaçaram e tudo o mais que essa quietude domina e mantém aprisionado dentro de si. Ali, entre aquelas paredes, o próprio tempo é mantido como prisioneiro: suas horas são perdas, seus instantes se tornam memória, sua força geradora esmorece lentamente no extravio. Ali, a própria idéia de progredir se converteu num empecilho: de onde estou não posso avançar, e estar parado me indigita o tempo que desmorona, as coisas todas sacrificadas a esse deus cujo altar não posso localizar em lugar nenhum

 

 

II

 

Desço, porém, como se descesse pela correnteza de um rio, atravessando paisagens que desconheço, lugares que nunca vi e que são os lugares de mim mesmo onde o silêncio se alastrou como uma erva antiga: vagueio por esses lugares, sem me conhecer, conhecendo apenas o pensamento de que vagueio, tal como um marinheiro não conhece as águas por onde navega, mas sabe que navega e toma o céu estrelado como guia. Que sabe ele acerca do mar profundo e tenebroso, do céu imenso e deserto, que no entanto ali, em sua absoluta estranheza, o fazem sentir-se senhor de si mesmo, capaz de seguir sem erros uma rota que o levará a um lugar seguro? Sua faixa de manobra é estreita, e se diria mesmo: infinitamente estreita, em comparação com as profundidades do mar e da noite, por onde ele navega sem medo, apenas levando no peito uma pequena ansiedade que o torna alerta para os perigos. Fora disso ele nada sabe nem é, e é a partir disso, dessa estreiteza calma que ele atravessa sem medo, que ele se constrói e se reconhece – pensando que o que se diz na língua das estrelas é o seu próprio nome cifrado em luz. Ele nada sabe sobre as profundidades vastíssimas, sobre os enormes abismos que se organizam acima de sua cabeça, e essa ignorância o preserva, lhe infunde coragem e, sobretudo, escreve o seu nome na superfície do mundo. Quando olha para o alto, é através dessa ignorância sagrada que ele olha, e pode então – ignorante de nascimentos e mortes e ciclos de nascimentos e mortes de universos inteiros que vão repercutir na eternidade – contemplar o olho do deus projetado sobre uma superfície, tal como a efígie do sol se pode projetar inteiramente numa pequena bacia de água.

 

 

III

 

Assim também o que eu olho dentro de mim, visível numa parte, compreensível, mas amplamente obscuro no todo, e imerso em obscuridade como um mar escuro, à noite, se confunde com a treva da noite, tornando-se um com ela ao mesmo tempo em que permanece sendo o mar onde qualquer afogamento é possível. Vivo de não me dar conta, de me esquecer a cada passo e de ignorar a maior parte – tal como esse marujo, que só pode existir na medida em que deixa grandes vastidões de si mesmo entregues ao acaso. Mas neste ponto cessam as comparações: parado num lugar, e não em movimento como um marujo, estou olhando de frente para alguma coisa, tal como alguém que abre uma porta e espia o interior de um cômodo – mas a porta que eu abro é como se se abrisse para um grande palácio-labirinto, onde sou convocado a entrar, mas onde sei também que me perderei e de onde não poderei sair. Abre-se para esses corredores cuja velhice me desconcerta, para esses ornatos e colunas cuja vetustez me estarrece, e, no que se abre, é como se se abrisse para uma intensa claridade que por ser tão intensa me ofusca no centro vertiginoso do pensamento.

 

 

IV

 

Que estou dizendo? Vogo, apenas, desço por uma correnteza que é ao mesmo tempo dispersão e progresso, direção e desvio, e o que estou procurando me leva cada vez mais para longe daquilo que pretendo encontrar. Desço, e em silêncio atravesso o silêncio gelado da noite, como quem atravessa um nevoeiro, guiado apenas por vagas impressões de realidade em que tem de penhorar a sua confiança, porque se não o fizer correrá o risco de naufragar. E o lugar para onde navego ou, melhor, o lugar em direção ao qual estou vogando é um lugar interior, uma espécie de centro em torno do qual orbitam os pensamentos que me falam do mundo, pensamentos do mundo que também estão, de algum modo, dissolvidos na névoa, como cabeças de rochedos à espera de alguma quilha que contra elas se arremesse. Vogo, sem parar, suportando sobre os ombros a impressão de haver sobre eles uma vastidão gelada e deserta; e, quanto mais me aprofundo nela, mais me aprofundo numa ignorância de todos os portos em cujo centro descubro a minha efígie e o meu nome. Sou – e não sou – aquele que voga, aquele que desce por uma correnteza de impressões, ou aquele que abre portas e escancara janelas em meio a uma solidão sufocante, na esperança de que o vento, entrando, corrija não tanto essa ausência de ar que o sufoca, mas o pensamento dessa ausência, que vai à sua frente como um batedor. E a direção que sigo é ignorada ou é todas as direções, porque o seguir em direção ao que quer que seja é seguir em direção a tudo o mais que se nega nessa única direção, tal como numa única aposta (aquela que não podemos deixar de fazer) se negam todas as outras possibilidades de vencer.

 

E desço, perscrutando a paisagem, tal como um timoneiro desce por uma correnteza, perscrutando as margens onde o perigo do desastre se atocaia a cada passo. Desço, porque tenho de descer, porque descer é ter de descer, não ter outra opção senão descer, e ser levado por uma correnteza cujas águas correm em direção aos nossos próprios pensamentos. Desço, como desce uma chuva quando cai sobre os telhados e escorre pelos beirais, como cai um fruto quando amadurece e chega o seu tempo de cair, como cai o mundo inteiro dentro de si mesmo; e o que cai em mim sou eu mesmo, e o que sou eu mesmo quando caio só desperta em mim esse pensamento, convertendo-se tudo o mais em desatenção, fadiga e silêncio. Em meio a um enorme silêncio, submerso ao peso de um profundo e amplo silêncio, assisto ao movimento das coisas que resvalam, assisto ao movimento de meus próprios pensamentos quando resvalam, quando se lançam no indefinido como largas redes que tentassem capturar um esquivo cardume de incertezas. E o que capturo são essas incertezas convertidas em paisagem, rio, pensamento e silêncio. E o que capturo, lançando as redes, são esses peixes de distração que não retenho – eu mesmo um peixe que se tentasse capturar na inútil rede de si mesmo e de seu próprio acontecer.

 

 

V

 

Leve, fútil, fugaz, vogo e não posso parar, e o silêncio do mundo me envolve, me fala aos ouvidos com uma linguagem cifrada que só posso compreender quando desisto. E, quando desisto, não encontro profundidade nem sentido. Quando desisto, tudo o que encontro são estas imagens superpostas, o forasteiro a penetrar num palácio de luzes cujo fulgor desperto se multiplica entre milhares de fragmentos e cuja unidade imóvel – o rosto imóvel do deus, que paira sobre todas as coisas, ao fundo das coisas, como um grande nome escrito ao fundo de todas as coisas, que ele esquece, que ele não pode ler, que ele tenta decifrar na escuridão, aprofundando-se cada vez mais na ignorância quanto mais se esforça para decifrá-lo – ultrapassa todas as possibilidades de apreensão. Ele é e sabe e domina, mas o que ele é e sabe e domina escapa inteiramente ao seu controle. Sou ele, quando entro nesse palácio, nessa ilusão de palácio. Sou o forasteiro que vê e observa com os seus olhos de forasteiro – estrangeiro aqui como em toda parte.

 

Estou e não estou, e quando digo que estou é na ignorância do que digo, e quando parto, quando tomo consciência de que parti, o que fica de mim, para reconhecê-lo, é o que não parte jamais e se confunde com o olho do deus projetado no infinito. E a noite, ao meu redor, ao seu redor, repete uma enorme palavra que não entendo, que ele não entende, que pensamento nenhum pode entender.

 

fevereiro de 2006

 

 

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