|
BUROCRACIA E ENSINO DE LITERATURA
(Renato Suttana)
"A administração das ideias,
por outro lado, frequentemente não requer
intelectuais, mas sim funcionários da cultura."
(Alfonso Berardinelli)
I
Os processos de burocratização da
vida moderna são ao mesmo tempo inevitáveis e terríveis.
Sempre me preocupou o tipo de desordem que podem causar
na mente das pessoas, com os desvios que ocasionam e os
diversos tipos de perversões a que podem conduzir. É
verdade que a maioria dos indivíduos no mundo
contemporâneo passa a maior parte de seus dias ocupada
com números, e que os seus pensamentos já não são
capazes, na época atual, de se fixar a qualquer aspecto
da realidade sem incluir nisso alguma forma de cálculo.
Mesmo os afetos e sentimentos são arregimentados: não se
pode mais, hoje em dia, sequer, admitir pessoas num
círculo de amizades sem que a essa admissão se acople
algum interesse, mesmo difuso. Uma pessoa vale para a
outra (e lhe aparecerá, portanto, como boa e digna de
amizade) na medida em que pode lhe trazer algum
benefício. Se lhe causa prejuízo, então se converte
imediatamente em inimiga. Assim se prepara o homem comum
para a vida burocrática, porque ele é, desde a infância,
treinado para ser calculista — no sentido que
popularmente se atribui a esse termo — e para buscar o
proveito que se pode extrair de cada situação. Quando
não o logra, sente-se frustrado e incapaz. Então é
provável que se perceba como indivíduo falhado, indigno
de consideração e apreço, mormente aquele apreço que ele
espera dos que julga superiores.
Os professores não escapam à
regra. A todo momento, surgem de todos os lados novos
processos e exigências de ordem sistêmica que os obrigam
a adaptações e compromissos. O uso da internet com o
suposto objetivo de tornar mais ágeis tais processos em
verdade apenas os complica. Pode-se ver isso nas
universidades e instituições de ensino. Estas, como
tantas empresas modernas, públicas ou particulares, com
os seus sistemas de registro e controle e os seus
complexos regimentos funcionais, transferem a terceiros
obrigações ou prerrogativas que antigamente ficavam ao
cargo de alguns, que delas se desincumbiam. Até mesmo
para enviar um memorando a um superior solicitando
talvez a reserva de uma sala de aula para a realização
de qualquer atividade, precisa-se, hoje, atravessar a
barreira dos números, códigos e links por entre
os quais, frequentemente, os mais distraídos e ineptos
se perdem. Tais exigências permeiam a vida acadêmica,
produzindo abalos, desvios e distorções, até o ponto de
se converterem elas mesmas num tipo de valor —
que será tanto maior quanto maior for a capacidade dos
indivíduos de se adaptar a elas. Um bom funcionário se
apresentará, por certo, tanto na empresa quanto na
universidade, como aquele que sabe se movimentar bem no
labirinto dos códigos. Mas isso dependerá do grau de
distorção e deterioração que sua mente tiver alcançado,
num certo patamar da vida profissional no qual o valor e
a deterioração já não se distinguirão um do outro.
A burocracia não tem história,
tem apenas arquivo. Pode-se constatar a verdade dessa
afirmação observando o modo como certas escolas
preservam os nomes e as fichas de identificação de seus
ex-professores ou agentes administrativos em arquivos
antigos (quando os preservam), sem manter com os
profissionais nenhum tipo de relação a não ser aquela
mesma de ter os seus nomes arquivados em algum lugar. Às
vezes, os ex-professores aparecem lá para participar de
alguma solenidade e, eventualmente, serão homenageados.
Mas a sua função na escola se esgotou, e o seu papel
agora se restringe a isto: tornaram-se estátuas a serem
expostas
ao público quando for conveniente. Não são mais
necessários, sua experiência não conta mais, tendo a sua
atuação e contribuições ao ensino se tornado coisa do
passado — mas de um passado que não interessa lembrar a
não ser na medida em que sirva às conveniências do
presente. Isso não tem a ver somente com as decisões
individuais: é imposto pelo próprio fato de existir a
instituição como tal. E o mesmo se passa em outros
setores da experiência docente, não sendo as secretarias
de educação de todos os rincões do mundo outra coisa
além de pequenas ou grandes máquinas de esvaziamento da
memória, com seus regulamentos, números, contagens de
tempo, autorizações e o que mais. Burocraticamente, os
profissionais cujos nomes ficaram registrados nos
arquivos não têm existência diante da máquina ou
deixaram de existir quando se aposentaram, abrindo
espaço para outros cujo destino não será diferente.
Nesse sentido, o prefixo ex já dirá tudo a seu
respeito, contendo a verdade final de suas aquisições.
Quanto a isso nada se pode fazer, porque o tempo já é passado,
e lá estão todos os calendários e os registros para
confirmar essa verdade, reafirmando-a a cada instante
para quem ouse duvidar.
Portanto, causa espécie pensar
que de um professor de literatura seja exigido, além
daquelas qualidades de sensibilidade frente ao texto
literário, erudição, criatividade, domínio razoável da
escrita em língua padrão e outras que o transformam num
literato, também um domínio amplo das miudezas
burocráticas, isso não é surpresa. Como ser, no começo
do dia, receptivo e sensível a um poema de Cecília
Meireles ou de Murilo Mendes, e à tarde um feroz
guardião dos horários, agendas e cronogramas, sem haver
nisso uma contradição? Como sair da leitura de O
processo, de Franz Kafka, ou Poesia liberdade,
de Murilo Mendes, e depois entrar, no dia seguinte, numa
reunião de departamento em que se cobrará de cada
participante o cumprimento de um determinado item
regimental cujo sentido é arcano, mas sem o qual nada
mais poderá funcionar na rotina de trabalho?
Multiplicam-se as reuniões, as assembleias e os
encontros deliberativos, nos quais são combinadas outras
reuniões que, por sua vez, gerarão outras, numa cadeia
interminável. Também o professor de Letras precisa
adaptar-se — é o que se propaga —, e a adaptação não
dirá respeito apenas ao conhecimento das (oportunistas e
nunca assazmente bem aplicadas) regras da ABNT ou da
formatação de artigos para apresentação em eventos. Terá
a ver com os esforços necessários para que o cérebro se
adapte a uma determinada concepção de mundo (o mundo
burocrático). E, quando isso acontecer, é provável que a
poesia e tudo o mais tenha se perdido ou passe a ser
encarado apenas como quimera.
Confesso que minha simpatia pelos
processos burocráticos sempre foi pouca. Desde a época
em que tive de solicitar um documento a uma secretaria
de educação, passando pelo verdadeiro labirinto que se
disfarçava como setor de recursos humanos de uma escola
militar, até as mil e uma dificuldades, nuances e
chicanas da burocracia universitária com que sempre me
bati (às quais, no pior dos meus pesadelos, temo que
estarei sujeito até depois da minha morte), adquiri
contra eles uma reserva instintiva, correlata ao
sentimento das urgências da vida e do pouco tempo de que
dispomos na Terra para realizá-las. Sair um jovem de
casa e se sentar todos os dias num banco de escola, para
passar as suas manhãs ou tardes ali (quando não passe o
dia inteiro), pode ser uma coisa boa aos olhos de
muitos, mas não deixa de ser uma catástrofe para ele.
Aqueles processos de autorregulação, analisados por
Norbert Elias em seus livros, podem ser tudo, mas são
também processos de autodestruição da psique
imaginativa. A mente humana não parece ter sido criada
para certas experiências e, neste setor, não sabemos até
onde poderá ir. Só o que se pode prever é que boas
coisas não advirão do fato de nos tornarmos
contabilistas inconscientes ou burocratas rigorosos, no
plano da sensibilidade, esperando que com isso o mundo
se modifique ou que das nossas reservas de sentimento e
grandeza — sempre dispensadas com parcimônia — germinem
aquelas belas flores que almejamos no futuro. Bem ao
contrário, tudo indica que não há relação de causa e
efeito entre os comportamentos que adotamos e essas
consequências que deles esperamos.
Provavelmente, o sentido de se
estudar literatura no mundo contemporâneo tem a ver com
os desejos humanos de acesso direto e desimpedido à
realidade, sem intermediações. É o que justifica os
esforços que se fazem para não alijá-la dos currículos
escolares e para tornar universal o acesso aos livros e
à poesia. A defesa do direito à literatura, feita por
Antonio Candido, não implica outra coisa que a
consciência dessa necessidade: “… a literatura
corresponde a uma necessidade universal que deve ser
satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque
pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do
mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto
nos humaniza”. Os homens não podem sucumbir
totalmente às injunções do processo social, por mais que
precisem dele para sobreviver; e para isto existem os
poetas: para lembrá-los de que não devem sucumbir. A
esperança do imediato talvez não esteja garantida, mas
fora dela a mente se deprava e os instintos se degradam,
produzindo-se então uma casta de indivíduos
psicologicamente miseráveis, cujos projetos de vida se
resumem em alimentar-se, procriar e esperar pela
velhice. É como se um peso os atraísse para baixo,
fazendo-os rastejar no chão. No entanto o elefante de
Drummond ainda vige, e os poetas continuarão a levá-lo
às ruas, mesmo que ninguém o queira admirar ou que o
mundo veja nele apenas um esboço tosco de vida, feito de
algumas palhas, paus amarrados e pouco mais.
Os burocratas detestam a
irregularidade — o que nem é tão ruim, quando se trata
de fazer cumprir a lei —, e assim, em muitos setores da
experiência, o medo à irregularidade se torna o único
habitat em que podem viver e prosperar. Querem existir
num mundo aplainado, previsível, e para tanto empregam
os números, os quais oferecem às pessoas a ilusão da
estabilidade, pois tornam mensurável o progresso. Isso
leva à produção incansável de regulamentos e regras,
como aqueles que orientam hoje os cursos de
pós-graduação, com seus níveis de excelência, suas
tabelas e suas numerosas categorizações — criados,
vê-se, para mensurar realidades às quais nem sempre
essas medidas querem se adequar. O melhor curso de
mestrado ou de doutorado é aquele que apresenta,
quadrienalmente, um determinado número de produtos
— como são chamados os resultados dos esforços dos
estudiosos para exprimir por escrito as reflexões a que
suas pesquisas os conduzem —, independentemente das
situações e circunstâncias concretas (contextos
socioeconômicos, culturais e humanos) a que os cursos
buscam servir. Os entusiastas da regra ficarão felizes
em ver que os formulários foram preenchidos corretamente
e que as porcentagens estão bem calculadas e que os
memorandos foram enviados pelos canais competentes, mas
isso, no campo das letras, nada tem a ver com poesia.
II
Regular e regulamentar são verbos
que o burocrata aprecia usar. São também os seus
adjetivos favoritos, pois manter as coisas sob controle,
produzindo conformidade a cada passo de suas vidas, é o
ideal de muitos. Fazer com que as situações pareçam
sempre o menos poéticas e inspiradas possível, eis o
objetivo que os orienta. A poesia, sob a perspectiva da
burocracia, já não é mais um evento da consciência no
seu encontro com a natureza e com o espanto: tornou-se
coisa, texto ou documento. Seu valor humano só se
justifica quando se pode equacioná-la numa fórmula.
Deixa de ser um dom da linguagem humana (isto é, da
capacidade que os homens têm de se comunicar em
linguagem) ou uma de suas possibilidades extremas, para
se tornar uma a mais entre as muitas e enfadonhas
obrigações que os homens têm que cumprir todos os dias,
num sistema de rotinas em que as coisas passam a
funcionar automaticamente, muitas vezes sem outra razão
para isso senão o fato mesmo de existirem. Torna-se,
como temia Viktor Chklovsky, automatismo, contra o qual
ela mesma já não pode resistir, porque, muito aquém do
gesto supremo da desautomatização a que nos desafia, tem
de patinar no limbo das coisas fungíveis. Para a
burocracia, tudo é passageiro e efêmero, exceto a
totalidade imutável do sistema, onde cada item deve ter
o seu lugar e a sua função, não importando quais sejam.
No entanto o medo à
irregularidade pode conduzir à morte da invenção. E a
poesia não faz outra coisa que instaurar a
irregularidade no mundo, dizendo aos homens que a vida
está sempre a começar ou, como quis Octavio Paz,
inaugurando um modo de ser no qual a própria história
terá o seu começo: “O poema é um tecido de palavras
perfeitamente datáveis e um anto anterior a todas as
datas: o ato original com que principia toda história
social e individual; expressão de uma sociedade e,
simultaneamente, fundamento dessa sociedade, e
condição de sua existência.” Os burocratas, porém,
não querem saber dessas coisas. Antes de se interessarem
pelo caráter inspirado das palavras de Paz, eles
se perguntarão em que exato momento a história começa de
fato e como poderão registrá-lo em suas atas. Tal como
aquele professor que um dia nos inquiriu acerca da
relevância de se estudar Lima Barreto na pós-graduação,
eles certamente quererão entender a relevância e a
aplicabilidade prática desse pensamento, e não se darão
por satisfeitos enquanto não o virem expresso segundo um
formato bem definido. Nesse instante, a poesia soará, de
fato, como uma perfeita excrescência, praticada por
nefelibatas que não sabem fazer nada na vida além de
procurar desenhos nas nuvens.
Os burocratas exigem que os
trâmites sejam cumpridos, até o ponto em que sua
linguagem se converta num jargão (assaz incompreensível
até para eles mesmos), em cujas malhas se enredam os
incautos e cuja única razão de ser é, exatamente, manter
as coisas como estão. Assim, fazem pensar naquela
descrição que Jonathan Swift lavrou do sistema legal dos
Yahoos em seu Gulliver’s Travels, na qual ficamos
sabendo que
it is likewise to be
observed, that this society has a peculiar cant and
jargon of their own, that no other mortal can
understand, and wherein all their laws are written,
which they take special care to multiply; whereby they
have gone near to confound the very essence of truth
and falsehood, of right and wrong: so that it will
take thirty years to decide, whether the field, left
me by my ancestor for six generations, belongs to me,
or to a stranger three hundred miles off. [Em
tradução livre: “Deve-se também observar que esta
sociedade tem uma gíria e um jargão todo próprios, que
nenhum outro mortal pode entender, e no qual todas as
suas leis estão escritas, as quais eles se reservam o
cuidado especial de multiplicar; pelo que eles chegaram
perto de confundir a própria essência da verdade e da
falsidade, do certo e do errado: de modo que levará
trinta anos para decidir se o campo, que meu ancestral
me legou depois de seis gerações, pertence a mim ou a um
estranho a trezentas milhas de distância.”]
Invadidos pela burocracia, os cursos de pós-graduação
vão ganhando, cada vez mais, uma feição de coisas feitas
por pessoas que só desejam se aposentar — e deve haver
uma verdade nisso, já que muitas vezes os avaliadores e
os gestores das agências de fomento estarão nessa
condição. Assoberbados de trabalho, aos professores não
lhes resta senão aceitar as regras, conforme se diz.
Assim se ajustam ao modelo de futuros aposentados —
mesmo que a aposentadoria ainda esteja distante no
horizonte —, com seus currículos abarrotados de
publicações e produtos, o seu senso de
proporções avariado (já que o vício da burocracia os
acostumou a reduzir tudo a quantidades mensuráveis) e a
sua esperança no futuro reduzida a migalhas. Resta-lhes,
pois, a alguns, publicar os seus poemas de juventude em
edições autofinanciadas — coisa que não tiveram tempo de
fazer enquanto, ao longo de suas carreiras, preenchiam
formulários e redigiam relatórios. A outros restará
comprar uma casa na praia, se ainda houver neles energia
para admirar as ondas e caminhar na areia durante as
manhãs, conforme sempre sonharam no correr das suas
vidas. É uma situação para se lamentar. E ter de
reconhecê-la num momento avançado de nossas próprias
carreiras chega a deprimir, mas não podemos nos esquivar
dos fatos. Tendo praticado a poesia como uma espécie de
obrigação — muitas vezes aborrecida — ao longo de sua
existência, ela não os socorrerá quando quiserem vê-la
de outra maneira, e convertê-la num hobby também não os
ajudará, pois a poesia já terá passado por suas
existências, sem deixar marcas, e a possibilidade de
perceber a sua imensa seriedade se terá dissipado em seu
espírito.
Propugno por um ensino de
literatura que busque os seus próprios caminhos, que se
paute pelo fervor da poesia e das letras e que,
sobretudo, não se deixe encabrestar pelos processos
burocráticos, mantendo sempre diante de si o sentimento
dessa seriedade. Fora disso não se justifica ensinar
literatura e tampouco fingir que estamos a estudá-la. É
preciso avançar para além dos números e das cifras.
Professores de literatura não devem se tornar
contabilistas de currículos, preenchedores de planilhas
e acumuladores de leituras (pois sabemos que muitos leem
por mera obrigação profissional, no que não se pode
censurá-los, e uma parte sequer encontra prazer nessa
atividade): precisam amá-la como o fazem os amantes
apaixonados.
Ora, como levar aos outros a
poesia do mundo, sem ter por ela qualquer simpatia? Tal
é o repto que se pode fazer àqueles que, a certa altura
de suas vidas, decidiram dedicar-se à literatura, e tais
são as perguntas que se lhes devem dirigir. Trabalhemos
para que o futuro nos permita, ao menos, dar boas
respostas a elas.
Dourados-MS, agosto de 2023.
|