Anacrusa
(Maurice Blanchot)
Contentar-me-ei (palavra desde
já inadmissível pelo que sugere de satisfação) com procurar ouvir de perto o
texto de Lyotard intitulado «O sobrevivente», e ao mesmo tempo ir meditando
sobre os poemas publicados e assinados por Louis-René des Forêts.
Onde fica o começo? Será alguém
ou algo que começa?
Temos a resposta de Hegel: a morte é a vida do
espírito. «O espírito não sobrevive à morte, ele é o render
da vida imediata…o espírito vive enquanto morto para a instância que ele
mesmo FOI… A
formação anterior já não está viva.» Donde resulta, e é muito importante,
que: «A entidade que fui já não pode dizer eu». «Eu» já só pode dizer-se
ENTÃO, na terceira pessoa. É assim que Hegel chega ao «nós» (nós, quer dizer
eu então e eu agora). Desta feita, nada se perde. A morte é sempre uma bela
morte, pois que «retida» neste «nós» que formam em conjunto o eu então e o
eu agora.
Mas será que verdadeiramente nada se perdeu?
O que necessariamente se perdeu foi a presença «viva» ENTÃO do que AGORA é.
A contingência está perdida, e podemos duvidar da presença do «então». E o
próprio tempo, que se reduz ao render de um modo por outro modo, está
perdido. Certamente que o voo da coruja significa um começo que garante a
sobrevivência do todo, a transmissão do todo, excepto o «vivo» e aquilo que
foi então presença tornada ausência ou que sempre foi ausência. Não podemos
escapar à tristeza da coruja, tristeza que o próprio Hegel foi o primeiro a
sentir e da qual fez o seu luto. Mas será possível o luto? Por culpa ou
graças a Hegel, pressentimos que aquilo que no presente parece tão vivo
precisou necessariamente do já morto. A isto chama Lyotard melancolia e
outros chamam «niilismo».
Mas se o começo não é o fim, se
pensamos o nascimento como uma morte, e a morte como um nascimento sem
«verdade», porque razão há um duplo não-ser? Porque não-ser como nascimento
e não-ser como morte?
É um enigma, e o enigma do começo revela que
HÁ uma relação com o que não tem relação. Nascimento que não é só melancolia
mas infinitamente mais doloroso do que a morte. Assim nos «Poemas de Samuel
Wood»:
Olha diz-te que nos dois
extremos do percurso
É a dor de nascer que é a
mais violenta
E que dura e se opõe ao medo
que temos de morrer.
Diz-te que não acabamos de
nascer
Mas que eles, os mortos,
acabaram de morrer.
«Diz-te». Trata-se pois de
uma história, uma história que conto a mim próprio ou creio contar, enquanto
são os outros que a narram (mas quem conta a história, no caso de eu ser uma
criança abandonada? E , segundo Freud julgo sempre que o sou). Esta perda
vinda de uma história que revoga o imediato é uma primeira dor (supondo que
as dores se deixem contar). Mas uma outra dor (e contudo a mesma) é a
lembrança de «Esta pátria nada de onde fui indevidamente arrancado»
(«As megeras do mar»). E ainda uma outra (mas será a mesma?):
Diz-te que não acabamos de
nascer
Mas que eles, os mortos,
acabaram de morrer.
(Poemas de Samuel Wood)
Portanto, a exigência de um
começo que é dor extrema, na medida em que é apenas um «talvez» (ilusão
contudo incontestável), ameaçada de destruição sem ter sido, ou incapacitada
de chegar ao fim, esta exigência está longe da morte reparadora que Hegel
nos faz esperar.
Exigência, enigma.
A criança, arrancada à mãe (arrancada àquilo que
crê ter sido uma união imediata) que a expulsa prematuramente (e não sendo
suficientemente crescida para a existência no mundo é já demasiado crescida
para a imediação materna, para a «mátria»),
a criança simboliza o começo no entre-dois. Conseguiu superar o enigma de
estar-ali, apresentando aos outros a vivacidade de uma presença espantosa
mas, na própria vivacidade,
EXPIA a presença, nas decepções, nas questões
vãs, no silêncio alcançado e ao mesmo tempo perdido. É DEVEDOR do começo
(diz Lyotard), e não pode saldar a dívida (porque não pode contentar-se com
ser um herdeiro, por muito filho de «rei» que seja), não pode pois parar de
nascer, MANDATO de nascença.
Contudo aparece como um «dom sublime», «a oferta
sublime»,
mas para
OUTREM, não para ele mesmo, a não ser talvez quando é atravessado pelo
enigma do começo como por aquele relâmpago do qual jamais esquecerá que o
deixa no terror da cegueira.
Aquele que diziam ser um
rapaz intratável
«Intratável» em si mesmo ou
intratável porque o diziam tal? E «intratável (para quem o dizia) exprimia
ora uma reprovação, ora um elogio. E já não é para si mesmo um puro
intratável se o for somente para aqueles que assim o dizem.
Resta: porque nascer? Porque não acabamos de
nascer? Porque será que nos resta para lá do próprio fim (e o fim é mesmo o
não ser absoluto), algo como uma inicial? É que inicial é antes de mais a
capacidade de julgar, de dizer não à abjecção (ou de dizer sim ou não), é o
PODER DA LIBERDADE. O homem MADURO que a meio da noite dá por si a ser
julgado pelo «rapaz intratável», e julgado por estar comprometido e não ter
cumprido devidamente a promessa, esse homem é ainda precisamente aquele que
não pára de nascer, de nascer na dívida silenciosa que continua a sentir em
relação ao não-ser perdido: nascer (namser) sem sobrevida.
A não ser pertencendo ao
velho mundo dos sábios, diz Samuel Wood. O Sábio
é o homem satisfeito, de Hegel; aquele para quem deixou de haver questões,
uma vez que pode de modo definitivo responder a tudo, não querendo, não
desejando, não mudando nada já. Está morto sem precisar do Outro (outro que
lhe dá a mão e o acompanha até à morte). O Mesmo absolutamente mesmo.
Mas, para o não-Hegel, restam
questões, palavras, silêncios, e também o sol radioso, os gritos dos
pássaros, cantos que escapam à necessidade infernal da linguagem, a ledice
das criaturas do céu, música onde, pela anacrusa, se sustém o silêncio do
que ainda não se ouve ou que se vai ouvir naquilo que não se ouve.
Quantas vezes ainda sonhar
com uma linguagem
Não escravizada pelas
palavras…
… e não renunciar à
memória do desejo de abraços silenciosos (talvez aquilo a que Levinas
chama «carícia»).
Isto é dito e quase não dito.
Nas «Megeras do mar», há esta
afirmação categórica: porque ser e já não ser são uma maldição igual.
Nos «Poemas de Samuel Wood», o não-ser de onde se nasce e o não-ser onde se
morre têm um igual sentido e não-sentido, e além disso a persistência, a
continuação da absoluta descontinuidade.
Em «As megeras do mar»:
E na minha memória dorida que
é tudo o que tenho…
Memória que, longe de Proust,
não tem salvaguarda: Nada, não ter memória de nada, nem mesmo
conhecimento da própria morte?
E finalmente, condenação ou
anulação duma narrativa que não guarde o memorial do percurso do não-ser ao
não-ser.
Mas não há memorial para quem
desmente o seu percurso.
Nos dois poemas (separados no
entanto pelo Acontecimento desastroso) encontramos o mesmo processo ou antes
o interminável processo.
E na minha memória dorida que
é tudo o que tenho
Procuro o lugar onde a
criança que fui deixou as suas marcas.
As marcas: rastos não daquilo
que teve lugar mas do que jamais se passou. E eis o que nos mantém afastados
das recordações de Proust, recordações involuntárias, reavidas gloriosamente
e aptas a afastar a morte através da arte ressuscitada.
Ainda rastos:
Sob o arco intemporal onde
reina a toda-pura nulidade
E mais ausente na própria
ausência dos meus rastos…
Há contudo um processo,
comparência (sempre «As megeras do mar») da criança perante a que já se
tornou outra criança:
E houve para despertar este
mau tormento de infância
Esta outra criança enamorada
do mesmo tormento secreto…
Confronto que, sem se repetir,
toma nos «Poemas de Samuel Wood» a forma mais irrecusável do processo sempre
antigo, sempre novo.
Aquele que diziam ser um
rapaz intratável
Vir agora julgar o homem que
o traiu.
Mas antes admitir a culpa do
que à laia de defesa
Valer-se duma sabedoria
adquirida.
(correndo o risco de aceitar a
paz melancólica de Hegel)
Mas porque é que a criança o
atormenta? Porque que é que se transforma em juiz? É que enquanto criança
sempre para nascer, o poder de julgar e de ser livre ainda lhe pertence,
denunciando a impostura dos tiranos da infância.
E também porque o juiz e o
arguido continua a ser a mesma criança a quem é impossível suavizar o
olhar justiceiro, com o coração que não perdeu o seu jovem
orgulho, a sua arte que consiste em dissimular os pontos fortes, a lucidez,
seu trono de prazer donde «ele» deve (sem saber quem é este ele)
recomeçar a ouvir, a pronunciar o veredicto.
Não lhe chegámos ao cabo com
a idade.
É (de novo) o enigma, o
enigma da estranheza da infância — infância que do enigma sabe mais pois
nenhuma resposta lhe convém, pronunciando em voz alta — a voz arrebatadora,
arrebatada ao silêncio que nela sempre se retém — o NON SERVIAM, recusa
gloriosa no aquiescer da extrema aflição.
Não querendo, não podendo
terminar, invoco para já a palavra de um Mestre hassid (que sempre recusou
ser Mestre), Rabi Nahman de Bratslav:
«É proibido ser velho»!
O que se pode começar por entender como:
proibido renunciar à renovação, proibido contentar-se com uma resposta que
deixaria de por em causa a questão — escrever afinal (mas é sem fim) apenas
para apagar o escrito ou mais exactamente escrevendo-o através do próprio
apagar, mantendo juntos o esgotamento e o inesgotável: o DESAPARECIMENTO que
não se extenua.
Chegou assim ao ponto de escrever o Livro
Secreto apenas para o queimar, tornando-se célebre como o autor do «Livro
Queimado».
Mas será este o inconveniente de
uma glória mística onde mesmo sem se humilhar nem se exaltar, ele dá a si
mesmo a possibilidade de um fim soberano.
Creio que Louis-René des Forêts recusa esta
possibilidade. O não-ser final não pode impedir que o nascer se continue,
quer dizer que FIQUE ALGO sempre por nascer, nascimento em dívida de si para
consigo, que deve a si mesmo o silêncio falhado ao fazer um voto, mas um
silêncio através do qual, mesmo falhado, se mantêm o dom da graça e a graça
do dom, o riso, as lágrimas, a selvajaria e talvez até a SORTE, se bem que
esta chegue atrasada e não sirva, precisamente porque só é sorte
escusando-se e recusando-se a qualquer uso e a qualquer serviço.
Não esqueçamos que os poemas são
atribuídos a Samuel Wood. Será isto uma ficção para fazer recair a
responsabilidade sobre outrem que deste modo seria o real da irrealidade?
Será uma outra voz que o autor só ouve de tempos a tempos, ou da qual foge
para que o seu segredo não seja revelado, nem ditas as verdades mais
profundas e mais desastrosas? Se por um lado nunca há resposta definitiva
mas só contestação perpétua, por outro fico surpreendido com alguns momentos
quase de paz onde o negativo não triunfa. É o caso destes três versos que
parecem pôr de lado a tentação do niilismo:
Não, é qualquer coisa de
outro modo obscura,
A ternura que faz embargar-se
a voz
O dever da amizade vigilante.
E depois os dez versos fortíssimos e de uma
grandeza inigualável do «fim» onde se presta homenagem a uma voz vinda de
algures (talvez a de Samuel Wood ou a do sem-nome) fora do alcance do
tempo e do desgaste; uma voz que mesmo sendo tão ilusória como
um sonho, há nela algo que perdura / Até mesmo depois de se ter
perdido o sentido e porquê? É que o seu
TIMBRE (sublinhado meu) vibra ainda como uma trovoada
/ Da qual não sabemos se se aproxima ou se se vai.
*
Voz, timbre, música. Será que através destas
palavras se abre a questão sem resposta do CONTRATEMPO? Contratempo: mesmo
que o entendamos de forma não subjectiva, poderá aparecer-nos sob diversas
formas. Para começar e de novo: Hegel, se de acordo com ele só no final e,
na morte e pela morte, no nascimento, podemos reaver conceptualmente o
começo: contratempo que suprime então o carácter imediato do tempo e ali se
suprime também na melancolia da extrema satisfação.
CONTRATEMPO: talvez, diferentemente, seja a
espera de um voltar atrás, por meio de uma retrospecção onde se ilude um
presente já sempre perdido, pois que nunca foi.
Volto-me enfim para a experiência tão
misteriosa e tão mal elucidada de Louis-René des Forêts da qual expus apenas
alguns poucos fios. Se nele a felicidade, a infelicidade de nascer, está
sempre subjacente ao ser que se desenvolve julgando afastar-se, a tal ponto
que (prosseguindo-se sem fim o nascimento fica sempre para além) podemos
considerar que o silêncio do infans é sempre a precessão da palavra,
e também que o não-ser não se deixa abolir no ser, mesmo quando parece
conjugar-se com ele no terrível vaivém do HÁ (o ser crê recuperar o não-ser,
mas o nascimento em seu não-ser obstina-se — Ostinato — sem ter ainda
revelado o seu segredo).
Recorrendo a um termo que data
da antiguidade grega, e que tomou um sentido técnico (aliás mal fixado)
durante o século XIX, tentaria entender a experiência (o contratempo) de
Louis-René des Forêts como uma espécie de anacrusa. Para os gregos, a
anacrusa é um simples prelúdio, tocado por exemplo na lira. Nos exemplos do
século XIX, torna-se mais complexa: no primeiro compasso, o inaugural, nada
se ouve ou ouve-se apenas um som tão fraco que parece estar em falta e
assim dura sem duração ou dura mais do que dura, de modo que depois dele ou
a partir dele a nota por fim tocada se eleva até atingir um brilho
prodigioso, um brilho de tal modo intenso que só lhe resta cair de novo no
silêncio. Deste modo o antes e o depois deslocam-se e não se fixam em lugar
determinado sem que o ouvido atento dê pela confusão.
Assim o augural da primeira ou extrema
infância experimentou — no primeiro compasso — um silêncio-grito, ainda
animal e contudo já humano. Manterá o emblema deste primeiro silêncio (mas
seria este o primeiro? Não haveria ali no antecedente do não-ser — a pátria
ou a mátria nada — uma comunicação silenciosa do mais íntimo e do mais
reservado?), silêncio ao qual ele é VOTADO e do qual, por meio de um
impossível desafio, se faz um VOTO.
Silêncio que, concertado na música, vai aqui inexplicavelmente romper-se no
ímpeto sublime duma voz coral tão bela (mas já não se trata de beleza) que
em seu redor o silêncio se refaz de modo a que não haja nada mais a ouvir do
que ela na sua escalada vertiginosa, e ele volta a cair tão absolutamente
neste silêncio que hão-de ser vãs as suas tentativas para reencontrá-la na
retroversão da lembrança loucamente perdida.
Daí o tormento talvez «demencial» de uma
aparição que preludiou o desaparecimento. Contratempo que a habilidade do
contracanto imitará em vão.
(Tradução de Sephi Alter)
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