A
TUMBA
(H.
P. Lovecraft)
Ao
relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste
asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual
criará dúvidas naturais acerca da autenticidade de minha
narrativa. É grande infortúnio o fato de que o grosso da
humanidade seja limitado demais, em sua visão mental, para pesar
com paciência e inteligência esses fenômenos isolados, vistos e
sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais
jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais
amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o real
e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude
dos delicados meios psíquicos e mentais de cada indivíduo,
mediante os quais nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo
prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão superior
que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.
Meu
nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um
sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma
vida comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais
e o recreio social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado
desde sempre em reinos que não pertencem ao mundo visível,
passando minha juventude e minha adolescência debruçado sobre
livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os campos e bosques
das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses
livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os
outros rapazes leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar
pouco, pois que discorrer mais detalhadamente apenas confirmaria
essas calúnias cruéis acerca de meu intelecto que às vezes ouço
sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam. Basta-me relatar
os eventos, sem analisar as causas.
Disse
que vivi afastado do mundo visível, mas não disse que vivi
sozinho. Isso nenhuma criatura humana poderia fazer, desde que, à
falta da camaradagem dos vivos, inevitavelmente se entra na
companhia de coisas que não são – ou não mais estão – vivas.
Próximo à minha casa existe um vale arborizado bastante singular,
em cujas profundezas crepusculares eu passava grande parte de meu
tempo a ler, a pensar e a sonhar. Pelas suas encostas cobertas de
musgo ensaiei meus primeiros passos de infância, e em volta de seus
carvalhos grotescamente retorcidos se teceram minhas primeiras
fantasias de juventude. Conheci as dríades dessas árvores e não
raro assisti às suas danças selvagens sob os raios vacilantes de
uma lua pálida, mas acerca dessas coisas não devo falar agora.
Falarei apenas da tumba solitária em meio ao matagal mais escuro do
declive – a tumba abandonada dos Hydes, uma velha e nobre família
cujo último descendente direto fora depositado em seus negros
recessos muitas décadas antes de eu nascer.
O
pórtico a que me refiro é feito de granito ancestral, lavado e
descolorido pelas névoas e pela umidade de muitas gerações.
Escavada na encosta, apenas a entrada da construção é visível. A
porta – uma pesada e proibitiva laje de pedra – pende de dobradiças
de metal enferrujado e, ligeiramente aberta, jaz lacrada por pesadas
correntes de ferro e cadeados, de acordo com um repulsivo costume de
meio século atrás. A residência do clã cujos descendentes estão
enterrados aqui coroou certa vez o declive no qual está a tumba,
mas há muito tombou vitimada pelas chamas que desceram do céu na
forma de um relâmpago. Daquela tempestade que à meia-noite
destruiu essa lúgubre mansão os habitantes mais velhos da região
às vezes falam entre sussurros e inquietações, aludindo ao que
chamam de “ira divina” de um modo que nos últimos anos fez
crescer vagamente o fascínio que eu sentia pelo sepulcro encravado
na mata. Um homem apenas pereceu no fogo. Quando o último dos Hydes
foi enterrado neste local de sombra e quietude, a triste urna de
cinzas veio de uma terra distante, para a qual a família se mudou
quando a mansão pegou fogo. Não resta ninguém para colocar flores
diante do portal de granito, e muito poucos se dão ao trabalho de
enfrentar as sombras depressivas que parecem guardar estranhamente
as pedras lavadas pelas chuvas.
Jamais
esquecerei aquele entardecer em que, pela primeira vez, me deparei
com a semioculta casa da morte. Foi em pleno verão, quando a
alquimia da natureza transmuda a paisagem silvestre numa única e
quase homogênea massa de verde, quando os sentidos estão quase
intoxicados com os mares afluentes de verdura úmida e os odores
sutilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Numa tal ambientação
a mente perde suas perspectivas, o tempo e o espaço tornam-se
triviais e irreais, e ecos de um esquecido passado pré-histórico
batem insistentemente contra a consciência enlevada.
Durante
o dia todo eu tinha estado a perambular através dos bosques místicos
do vale, a conceber pensamentos que não há que discutir e a
conversar com coisas que não há que nomear. Com apenas dez anos,
eu tinha visto e ouvido muitas maravilhas que a turba desconhecia e
já era espantosamente maduro em certos aspectos. Quando, depois de
abrir caminho entre duas touceiras de arbustos, subitamente deparei
com a entrada da cripta, não tinha o menor conhecimento acerca do
que encontrara. Os blocos negros de granito, a porta curiosamente
semicerrada e os entalhes funerais sobre o arco não despertaram em
mim quaisquer associações de caráter fúnebre ou terrível. Sobre
sepulturas e tumbas eu sabia e devaneara bastante, mas fora poupado,
devido ao meu temperamento peculiar, de todo contato com adros e
cemitérios. A estranha casa de pedra escondida entre o mato na
encosta constituía para mim apenas uma fonte de interesse e
especulação, e seu interior frio e úmido, para dentro do qual eu
espiava através da excruciante abertura, não me sugeria nada de
morte ou decadência. Mas naquele instante de curiosidade nasceu o
desejo loucamente irracional que me trouxe até este inferno de
confinamento. Espicaçado por uma voz que deve ter vindo da alma
medonha da floresta, tomei a decisão de penetrar na escuridão que
me convocava, a despeito das pesadas correntes que impediam minha
passagem. Na luz evanescente do dia chacoalhei insistentemente os
obstáculos enferrujados, na esperança de abrir a porta de pedra, e
até mesmo experimentei espremer meu corpo magro através do pouco
espaço disponível, mas essas tentativas não surtiram efeito.
Curioso no início, tornei-me frenético e, quando ao anoitecer
retornei a casa, jurara aos cem deuses da mata que a qualquer custo
um dia haveria de forçar minha entrada nas profundezas escuras e gélidas
que pareciam me chamar. O médico de barba grisalha que todos os
dias vem até meus aposentos certa vez disse a um visitante que essa
decisão marcou o começo de uma lamentável monomania; mas deixarei
o julgamento final a cargo de meus leitores, depois que souberem de
tudo.
Os
meses subseqüentes à minha descoberta foram gastos em tentativas fúteis
de forçar o complicado cadeado da cripta semicerrada, bem como em
perquirições cuidadosas e vigilantes acerca da natureza e da história
da construção. Com os ouvidos tradicionalmente receptivos de um
menino, aprendi muito, embora uma discrição habitual não me
permitisse contar a ninguém sobre o meu conhecimento ou minha
resolução. Será talvez importante mencionar que não fiquei nem
um pouco surpreso ou aterrorizado com a natureza do pórtico. Minhas
idéias bastante originais acerca da vida e da morte tinham me
levado a associar, de maneira vaga, a argila fria com o corpo que
respira, e senti que a grande e sinistra família da mansão
incendiada estava de algum modo dentro do espaço de pedra que eu
procurava explorar. Lendas murmuradas acerca de ritos exóticos e
festins pagãos de épocas passadas, ocorridos dentro do vestíbulo
ancestral, despertaram em mim um novo e irresistível interesse pela
tumba,
em frente a cuja porta eu me sentaria durante horas diariamente. Um
dia acendi uma vela diante da entrada obstruída, mas nada pude ver
a não ser um lance descendente de degraus de pedra úmida. O odor
do lugar me repelia e ao mesmo tempo me enfeitiçava. Sentia como se
já o tivesse conhecido num passado remoto, anterior a toda lembrança,
anterior mesmo à habitação deste corpo que agora possuo.
No
ano seguinte àquele em que vi a tumba pela primeira vez,
deparei-me, no sótão cheio de livros de minha casa, com uma tradução
corroída das Vidas de Plutarco. Ao ler a vida de Teseu,
fiquei por demais impressionado com a passagem em que se fala da
enorme pedra sob a qual o menino herói haveria de encontrar as
pistas sobre seu destino assim que se tornasse adulto o suficiente
para erguer o grande peso. A lenda teve o efeito de aplacar minha
aguda impaciência em atravessar o portal, fazendo-me sentir que a
hora ainda não chegara. Mais tarde – eu disse a mim mesmo –
crescerei e adquirirei força e habilidade que me permitirão
destrancar facilmente a porta que os grilhões encerram, mas até lá
seria melhor me conformar com o que me parecia ser a vontade do
destino.
Com
efeito, minhas vigílias diante do portal úmido tornaram-se menos
persistentes, e grande parte do meu tempo era despendida em outras
atividades igualmente estranhas. Às vezes eu me levantava em silêncio
durante a noite, saindo às escondidas para andar por esses cemitérios
ou locais de sepultamentos dos quais meus pais me mantiveram
afastado. O que eu fazia lá não posso dizer, pois agora não estou
seguro de algumas coisas, mas sei que no dia seguinte a essas rondas
noturnas eu costumava pasmar os que me cercavam exibindo
conhecimento de assuntos quase esquecidos durante muitas gerações.
Foi depois de uma noite dessas que surpreendi a comunidade com uma
idéia inusitada acerca do enterro do rico e celebrado Squire
Brewster, personagem da história local que fora sepultado em 1711 e
cuja lousa, exibindo um crânio gravado e ossos cruzados, ia
lentamente se transformando em pó. Num lance de fantasia infantil,
aventei não somente que o coveiro, Goodman Simpson, teria roubado
os sapatos de fivelas de prata, as calças de seda e as roupas de
baixo de cetim do falecido antes do enterro, mas que o próprio
Squire, não totalmente inanimado, teria se virado duas vezes em seu
caixão coberto de terra no dia seguinte ao do sepultamento.
Mas
a idéia de entrar na tumba nunca me saiu da cabeça, sendo mesmo
estimulada pela inesperada descoberta genealógica de que minha
ascendência materna mantinha um ligeiro vínculo com a supostamente
extinta família dos Hydes. Último de minha raça paterna, eu era
igualmente o último dessa linhagem mais antiga e mais misteriosa.
Comecei a sentir que a tumba era minha e a esperar
ansiosamente pelo momento em que poderia atravessar a porta de pedra
e descer na escuridão por aqueles degraus de pedra lodosa. Adquiri
o hábito de ouvir com atenção através da porta semiaberta,
preferindo as horas da quietude noturna para essa estranha vigília.
Quando adquiri mais idade, abri uma pequena clareira no matagal que
recobria a face do declive, permitindo que a vegetação circundante
cercasse e envolvesse a abertura como uma espécie de cerca viva
selvagem. Essa clareira se tornou meu templo, a porta fechada meu
santuário, e era aqui que eu me deitava sobre o solo musgoso a
pensar estranhos pensamentos e a sonhar sonhos estranhos.
A
noite da primeira revelação estava bastante abafada. Devo ter
adormecido de cansaço, pois foi com uma clara sensação de
despertar que ouvi as vozes. Hesito em falar desses acentos e
timbres, não falarei de sua qualidade, mas posso dizer que
apresentavam espantosas diferenças de vocabulário, pronúncia e
modos de enunciação. Cada matiz dialetal da Nova Inglaterra, desde
as ásperas sílabas dos colonos puritanos até a retórica precisa
de cinqüenta anos atrás, parecia representado naquele colóquio
sombrio, conquanto somente mais tarde eu notasse esse fato. Naquela
hora, decerto, minha atenção foi desviada desse aspecto por um
outro fenômeno – um fenômeno tão fugaz que eu não poderia
jurar acerca de sua realidade. Mal me dei conta de ter despertado,
uma luz foi imediatamente apagada dentro do sepulcro escuro.
Não creio que fiquei perplexo ou apavorado, mas sei que fui transformado
profunda e permanentemente naquela noite. Logo que voltei a casa,
dirigi-me imediatamente a uma arca carcomida no sótão, onde
encontrei a chave que no dia seguinte removeu com facilidade o obstáculo
contra o qual me bati em vão durante tanto tempo.
Foi
sob o brilho de um suave entardecer que entrei pela primeira vez na
cripta da encosta abandonada. Como se enfeitiçado, meu coração
vibrava de um contentamento que não sei descrever. Assim que fechei
a porta atrás de mim e desci os degraus encharcados à luz de uma
vela, era como se eu já soubesse o caminho, e embora a vela
crepitasse na atmosfera sufocante do lugar, eu me sentia
singularmente em casa naquele ar mofado e sepulcral. Olhando ao meu
redor, avistei muitas lajes de mármore sustentando esquifes ou os
restos de esquifes. Alguns estavam lacrados e intactos, mas outros
se tinham quase desfeito, deixando apenas as alças de prata e as
placas isoladas em meio a alguns montículos singulares de pó.
Sobre uma das placas li o nome de Sir Geoffrey Hyde, o qual viera de
Sussex em 1640 e morrera aqui uns poucos anos mais tarde. Numa
alcova conspícua havia um caixão desocupado e bastante bem
preservado, adornado apenas com um nome que me fez sorrir e
estremecer. Um impulso inusitado me levou a subir na laje larga, a
apagar minha vela e a me deitar dentro da caixa vazia.
À
luz cinzenta da aurora cambaleei para fora da cripta e tranquei a
corrente da porta atrás de mim. Já não era mais um jovem, embora
apenas vinte e um invernos houvessem esfriado minha estrutura corpórea.
Aldeões madrugadores que observaram minha caminhada até casa
olhavam-me de maneira estranha e espantavam-se com os sinais de
obscena euforia que descobriam num homem cuja vida era
conhecidamente solitária e austera. Não compareci perante meus
pais sem antes passar por um sono longo e restaurador.
Desde
então passei a ir à tumba a cada noite, vendo, ouvindo e fazendo
coisas que não devo jamais recordar. Meu modo de falar, sempre
suscetível às influências do ambiente, foi a primeira coisa a
sucumbir à mudança, e o arcaísmo de dicção que subitamente
adquiri foi logo notado. Mais tarde, um atrevimento e uma audácia
inesperados apareceram em meu comportamento, até que
inconscientemente comecei a tomar os modos de um homem do mundo, não
obstante meu passado de reclusão. Minha língua, silenciosa de
costume, deslizava com a graça fácil e volúvel de um Chesterfield
ou com o cinismo ateu de um Rochester. Passei a exibir uma peculiar
erudição, totalmente distinta do saber fantástico e monacal sobre
o qual me esfalfara em minha juventude, bem como a cobrir as guardas
de meus livros com fáceis epigramas de improviso, os quais evocavam
acentos de Gay, Prior e a engenhosidade vivaz dos augustanos. Certa
manhã, durante o desjejum, cheguei à beira do desastre, ao
declamar com acentos de efusão palpavelmente alcoólica de uma
jovialidade setecentista, uma peça de jocosidade georgiana nunca
registrada em livro, que dizia mais ou menos o seguinte:
Tragam
aqui, meus rapazes, seus canecos de cerveja
E
bebam ao dia de hoje, antes que já não mais seja.
Encham
seus pratos de bifes, empilhando-os em montanha,
Pois
só beber e comer é o que da vida se ganha.
Encham
suas taças,
Pois
a vida passa,
E
depois ao rei e à amada não há quem um brinde faça.
O
nariz de Anacreonte era vermelho, se diz;
Mas
o que é um nariz vermelho quando se é alegre e feliz?
Melhor
ser vermelho agora – Deus me castigue! – que estar
Branco
como um lírio ou morto antes de o ano acabar!
Venha,
Betty, em festa,
Beije-me
na testa;
Filha
de estalajadeiro no inferno não há como esta!
Que
o jovem Harry ainda esteja de pé nos causa surpresa,
Logo
há de perder a linha e entrar debaixo da mesa;
Mas
encham bem suas taças, passem-nas de mão em mão,
Melhor
embaixo da mesa do que debaixo do chão!
Que
reine o festim,
Que
bebam por mim:
Sob
sete palmos de terra não se ri tão bem assim!
Que
o diabo me carregue, se mal me agüento de pé
e,
com todos os demônios, se de mim ainda dou fé!
Aqui,
patrão, mande Betty chamar um carro, que eu vou
correr
para casa, enquanto minha esposa não chegou!
Alguém
me sustente,
Antes
que eu me sente:
Que
enquanto em cima da terra estou feliz e contente.
Por
essa época é que adquiri meu medo atual ao fogo e aos temporais.
Indiferente até então a tais coisas, tinha por eles agora um indizível
horror e me retiraria para os recantos mais profundos da casa assim
que nos céus se anunciassem quaisquer sinais de eletricidade. Um de
meus abrigos favoritos durante o dia era o porão arruinado da mansão
que se incendiara, e na imaginação eu reconstituía a estrutura
tal qual teria sido em seus primórdios. Em certa ocasião, deixei
pasmado um aldeão ao conduzi-lo secretamente até um sub-porão de
teto baixo, de cuja existência eu parecia saber a despeito do fato
de ele ter ficado oculto e esquecido por muitas gerações.
Por
fim aconteceu o que eu há muito temia. Meus pais, alarmados com a
alteração de maneiras e aparência de seu único filho, começaram
a exercer sobre meus movimentos uma amável espionagem, a qual ameaçava
resultar em desastre. Eu nada dissera acerca de minhas visitas à
tumba, tendo guardado meu propósito secreto com zelo religioso
desde a infância, mas agora me via forçado a ter cautela quando
penetrava os labirintos da depressão brenhosa, não fosse estar
sendo seguido às ocultas. Minha chave para a cripta eu a mantinha
pendurada num cordão no pescoço, como um segredo que só eu
conhecia. Nunca trouxe para fora do sepulcro qualquer das coisas que
encontrei por entre aquelas paredes.
Certa
manhã, quando saí da tumba úmida e prendi as correntes do portal
com pouca firmeza, lobriguei numa macega próxima a face horrorizada
de um bisbilhoteiro. Por certo o fim estava próximo, pois meu
recanto fora descoberto e o objetivo de minhas jornadas noturnas
fora revelado. O homem não me abordou, de modo que me apressei a
chegar a casa, a fim de descobrir o que ele reportaria ao meu pai
preocupado. Seriam minhas incursões para além da porta trancada
reveladas ao mundo? Imaginem com que espanto deleitoso ouvi meu espião
informar a meu pai, num cauteloso sussurro, que eu tinha passado
a noite na clareira em frente à tumba, meus olhos baços de
sono fixados na fenda da porta não de todo fechada! Que milagre
ocorrera a ponto de iludir assim esse observador? Convenci-me de que
um agente sobrenatural me protegera. Na audácia que tal circunstância,
enviada do céu, me dava, passei a ir, sem nenhuma dissimulação,
à cripta, na confiança de que ninguém testemunharia minha
entrada. Durante uma semana provei à saciedade as alegrias daquele
convívio sepulcral, o qual não descreverei, até que a coisa
aconteceu e me vi arrastado para este maldito lugar de tristeza e
melancolia.
Não
devia ter me aventurado a sair naquela noite, pois indícios de trovões
relampejavam nas nuvens e uma fosforescência infernal subia do pântano
ao fundo do vale. Também o chamado dos mortos estava diferente. Em
vez da tumba na encosta, era o demônio que presidia o porão
chamuscado no topo da elevação que me acenava com dedos invisíveis.
Quando saí de um matagal intermediário para o plaino diante da ruína,
descobri sob o luar nebuloso uma coisa pela qual sempre esperara
vagamente. A mansão, destruída havia um século, mais uma vez se
erguia no alto como uma visão arrebatadora, todas as janelas a
brilhar com o esplendor de muitas velas. Pela longa estrada rodavam
as carruagens da elite de Boston, enquanto a pé se aproximava um
numeroso ajuntamento de janotas empoados, provenientes das mansões
vizinhas. Misturei-me a essa multidão, conquanto estivesse certo de
pertencer mais ao dos anfitriões que ao dos hóspedes. Para além
do saguão havia música, gargalhadas e vinho em todas as mãos.
Reconheci muitas faces, e as teria reconhecido melhor ainda se as
visse ressequidas ou carcomidas pela morte e pela decomposição. Em
meio a essa turba selvagem e estouvada, eu era o mais selvagem e o
mais debochado. Alegres blasfêmias jorravam de meus lábios, e em
chocantes gracejos eu desprezava as leis de Deus ou da natureza.
Súbito,
o estrondo de um trovão, muito mais forte que a algazarra do imundo
festim, rompeu o telhado e fez baixar um enorme silêncio sobre a
companhia turbulenta. Línguas vermelhas de fogo e golfadas de calor
ardente envolveram a casa, e os participantes, tomados pelo pavor de
uma iminente calamidade que parecia transcender os limites da
natureza desgovernada, fugiram aos gritos noite adentro. Somente eu
permaneci, preso ao meu assento por um medo humilhante que nunca
antes sentira. E então um segundo horror tomou conta de minha alma.
Queimado vivo até às cinzas, meu corpo disperso aos quatro ventos,
eu nunca poderia jazer no túmulo dos Hydes! Não estava meu caixão
já preparado para mim? Não tinha eu o direito de descansar até a
eternidade entre os descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Ai! eu
exigiria minha herança de morte, mesmo que minha alma vagasse através
das eras à procura de uma nova habitação corpórea, que a
representaria sobre aquela laje desocupada na alcova da cripta.
Jervas Hyde não deveria jamais compartilhar do triste destino de
Palinuro!
Quando
o fantasma da casa incendiada desapareceu, encontrei-me a gritar e a
me contorcer loucamente nos braços de dois homens, um dos quais era
o espião que me seguira até a tumba. A chuva caía torrencialmente, e
sobre o horizonte, na direção sul, viam-se os clarões dos relâmpagos
que há pouco tinham passado sobre nossas cabeças. Meu pai, a face
transtornada de pesar, estava ao lado, enquanto eu ordenava aos
berros que me colocassem na tumba, admoestando freqüentemente os
meus capturadores para me tratarem com a máxima consideração. Um
círculo escuro sobre o piso do porão arruinado sugeria uma
carga violenta dos céus, e era nesse local que um grupo de aldeões
curiosos estava a examinar com lanternas uma caixa pequena de
fabricação antiga, que a explosão do raio trouxera à luz.
Cessando
minhas contorções fúteis e sem sentido, observei os espectadores
enquanto olhavam o pequeno tesouro e obtive permissão para
compartilhar de suas descobertas. A caixa, cujo fecho tinha se
partido com o golpe que a desenterrara, continha alguns papéis e
objetos de valor, mas eu só tinha olhos para uma coisa. Tratava-se
da miniatura em porcelana de um homem jovem usando uma peruca
caprichosamente encaracolada, a qual portava as iniciais “J. H.”
Quanto à face, sua conformação era tal como se eu estivesse a me
olhar no espelho.
No
dia seguinte, trouxeram-me a este quarto que tem grades nas janelas,
mas tenho sido informado sobre certas coisas por um homem velho, de
mentalidade rude, por quem nutro simpatia desde a infância, o qual,
tal como eu mesmo, também é amante de cemitérios. O que ousei
relatar de minhas experiências na cripta trouxe-me apenas sorrisos
de piedade. Meu pai, que me visita com freqüência, assevera que em
tempo algum atravessei o portal lacrado pelas correntes e jura que,
quando o examinou, o cadeado enferrujado tem estado como sempre
esteve ao longo de cinqüenta anos. Chega mesmo a dizer que toda a
comunidade sabia de minhas idas ao túmulo e que eu era muitas vezes
vigiado enquanto dormia na clareira da encosta, meus olhos
semicerrados fixos na fenda que conduz ao interior. Contra essas
afirmações não tenho nenhuma prova tangível, até porque a chave
para o cadeado se perdeu na luta durante aquela noite de horrores.
As coisas estranhas do passado que aprendi durante aqueles encontros
noturnos com os mortos ele as reputa como meros frutos de minha vida
pregressa de onívora perscrutação sobre volumes antigos da
biblioteca da família. Não fosse pelo meu velho serviçal Hiram,
eu hoje estaria convencido de minha loucura.
Mas
Hiram, leal até o fim, conservou sua fé em mim e fez aquilo que me
impele a trazer a público pelo menos uma parte de minha história.
Há uma semana, ele quebrou o cadeado que prende a porta da tumba em
sua posição perpetuamente semicerrada e desceu com uma lanterna até
as profundezas sombrias. Sobre uma laje, numa alcova, encontrou um
velho mas ainda vazio caixão cuja inscrição deslustrada contém
uma simples palavra: Jervas. Nesse caixão e nessa cripta é que me
prometeram que serei enterrado.
(Tradução
de Renato Suttana)
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