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Nicolau Saião, sem título (arte digital)

 

AS DUAS RESPOSTAS DA CRÍTICA [1]

 

(Renato Suttana)

 

 

Abertura

 

Parece ter-se tornado um lugar-comum da crítica literária admitir que a poesia – ou o poético, mais especificamente – constitui uma espécie de linguagem e que tal linguagem é marcada pela indeterminação. A primeira parte da noção tem alimentado as esperanças de muitos, e a segunda lhes tem oferecido conforto. Ao imaginar que o poético é uma linguagem, a crítica se coloca, de novo, a caminho, pondo-se a inquirir o que vem a ser essa linguagem (ou o que pode vir a exprimir). Ao mesmo tempo, aparece para si mesma como um problema: admitindo que o poético, uma vez colocado em questão, se realiza como uma abertura, uma disponibilidade de sentido que não somente o possibilita como poético, mas que, mais do que isso, o torna passível de crítica e de comentário (já que – seria de acreditar – nenhuma crítica se pode estabelecer senão na possibilidade instaurada pela abertura), a crítica encontra aí o seu momento inaugural. É a perspectiva de preencher o hiato ou de se alimentar do que a abertura provê que a põe em movimento e lhe dá uma justificação. E se não pode, no final, transpor o abismo implicado, isso não diz respeito a uma mera contingência de métodos ou a certa deficiência detectável na tecnologia dos conceitos. Antes, mostra que, ao eleger o impasse como seu lugar de origem, esse é o único espaço que ela tem a percorrer e que o recomeço é, de fato, o seu verdadeiro quinhão.

 

A noção de abertura é correlata, modernamente, à noção de que o movimento da literatura se corporifica, no âmbito da interpretação, numa dupla polaridade, que vai da obra criticada à linguagem da crítica que a interpreta. A esse respeito, quem nunca terá ouvido, mesmo da boca dos mais sapientes, a afirmação de que a obra literária está, quanto à possibilidade de lhe captarmos os sentidos mais recônditos (ou certa significação essencial de que não se pode abrir mão), muito adiante da crítica que sobre ela se debruça? A idéia, porém – que não deve ser subestimada –, apenas aprofunda o impasse. Revela, pelo menos, que a crítica, ao conceber a abertura como seu espaço de origem, desde sempre se tem concebido como impossibilidade. Tomada como empreendimento que de antemão já se condenou ao fracasso, não lhe resta senão retomar a cada vez o trabalho de Sísifo da teoria e da perquirição, o qual nenhuma esperança de final abençoa. Pode, na liberdade que reivindica de avançar e de interpretar, terminar o que começou? Ouçamos o que tem a dizer um de seus arautos mais proeminentes na modernidade:

 

A poética da obra “aberta” tende, como diz Pousser, a promover no intérprete “atos de liberdade” consciente, pô-lo como centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos de organização da obra fruída; mas (apoiando-nos naquele significado mais amplo do termo “abertura” que mencionamos antes) poder-se-ia objetar que qualquer obra de arte, embora não se entregue inteiramente inacabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar num ato de congenialidade com o autor. (ECO, 1976, p. 41, grifo do original)

 

Se as palavras de Umberto Eco elogiam certa poética do inacabado ou do lúdico que hoje em dia se tornou corriqueira, a insistência na idéia de que a obra literária – ou, para usarmos um termo familiar à teoria, o texto da literatura – é uma potencialidade da forma, que permanece à espera da colaboração de outrem para se converter em ato, remete ela mesma ao cerne do problema. Não se trata apenas de exigir uma resposta ou de dirigir ao leitor uma pergunta que o converterá em interlocutor ou cúmplice do jogo, cuja participação realiza o potencial de inacabado da obra. Trata-se de suscitar no outro uma reação, que deve ser “livre”, “inventiva”, conforme a disposição de cada um em participar. Ao mesmo tempo, atrai-se para a intimidade da obra (aceitemos o termo, por enquanto) aquele que deve ficar afastado dela, isto é, impedido de incorporá-la em si na vertigem tenebrosa do mesmo e da indistinção. Esse afastamento tem sido fundamental para o pensamento da crítica. Insistindo na abertura e na multiplicidade, a nitidez da distinção – obra de um lado e crítica do outro – preserva a integridade de um eu e de um ele que não se devem confundir. É também aquilo que, mantendo afastados os pólos (sem os quais não haveria interpretação nem comentário) e transformando a obra em objeto de análise, permite à crítica a possibilidade de constituir-se como linguagem. A obra, a partir da abertura, só pode falar se for mantido o esforço da distinção ou se – conservando-se desobstruído o caminho que leva o leitor a se converter numa espécie de co-autor ou de parceiro de autoria – a integridade dos espaços não for comprometida.

 

Mas não vai nisso um excesso de otimismo, uma excessiva confiança nos poderes do pensamento que, do lado do objeto, nada parece autorizar? Falando de certas relações que o leitor mantém com a obra literária e teorizando sobre o elemento catártico da fruição estética, também o alemão Jauss – que se diria um pouco menos confiante do que Eco – parece ter cedido às tentações da multiplicidade. Ao concluir que o prazer da leitura não se dá apenas como uma excrescência, como o resultado de uma abordagem de cunho hedonista da literatura – que aqueles que se mantêm fiéis aos compromissos (humanos, ideológicos, sociais) da arte tendem a menosprezar –, argumentou que o prazer se assenta num fator de abertura. O fato de que a obra seja aberta (não tanto no sentido que Eco concedeu à expressão, mas no sentido de que é um todo passível de múltiplas interpretações) e remeta sempre a um mais além que a crítica não pode alcançar (pelo menos, sem destruir a liberdade da leitura), se apresenta para Jauss como garantia de seu futuro. Sobretudo, sustenta a necessidade de sobrevivência da literatura, quando esta atravessa as vicissitudes da história e se compromete com a precariedade do comentário:

 

As três categorias básicas da experiência estética, poiesis, aisthesis e katharsis não devem ser vistas numa hierarquia de camadas, mas sim como uma relação de funções autônomas: não se subordinam umas às outras, mas podem estabelecer relações de seqüência. Em face de sua própria obra, o criador pode assumir o papel de observador ou de leitor; sentirá então a mudança de sua atitude, ao passar da poiesis para a aisthesis, diante da contradição de não poder, ao mesmo tempo, produzir e receber, escrever e ler. Quando o leitor contemporâneo ou as gerações posteriores receberem o texto, revelar-se-á o hiato quanto à poiesis, pois o autor não pode subordinar a recepção ao propósito com que compusera a obra: a obra realizada desdobra, na aisthesis e na interpretação sucessivas, uma multiplicidade de significados que, de muito, ultrapassa o horizonte de sua origem. (JAUSS, 1979, p. 81)

 

Ao fazer com que a abertura impregne o momento de origem da obra, o conceito de Jauss tende a interpretá-la como uma qualidade absoluta, sem a qual a história da recepção não seria possível nem as interpretações se concretizariam. Mas, depois de tudo, ainda nos perguntaríamos: e é mesmo a história que ameaça desmoronar ou não teria sido apenas a crítica que, ao tentar se constituir como atividade autônoma da cultura – capaz de criar uma linguagem própria, para a qual as obras literárias existem de algum modo, como possibilidade de um sentido que não se deve esgotar – que usurpou o primeiro plano das preocupações?

 

A crítica, neste ponto, não pode senão reconhecer o seu fracasso, o seu caráter de contingência, bem como a incapacidade em que sempre se achou de ser uma linguagem à altura do objeto. Quando muito, poderia reservar-se um lugar – situado à distância tanto do histórico quanto do literário – que permitiria, como na estética de Jauss, julgar a contingência for fora, pesando os compromissos e, quem sabe, reconhecendo neles as falácias da pretensão de verdade. Se as interpretações e as leituras variam conforme a constituição e a atitude dos tempos, aquilo que as torna possíveis deve permanecer intocado – e não só porque falte verdade à tentativa de abarcá-lo (por qualquer meio que seja), mas porque o jamais atingi-lo é inerente ao empreendimento da crítica, manifestando-se no processo como garantia de integridade: “O observador pode considerar o objeto estético como incompleto, sair de sua atitude contemplativa e converter-se em co-criador da obra, à medida que conclui a concretização de sua forma e de seu significado” (JAUSS, 1979, p. 82).

 

Mas como concretizar a forma ou o significado, se aquilo que o objeto concede ao observador já se perdeu há muito no sulco aberto pela multiplicidade?

 

 A postulação de que a obra está à frente da crítica e de que a interpretação não esgota o seu sentido final – não importando o que contenha de verdade ou de inverdade – é o pressuposto que permite demarcar o território da crítica como território independente. Ao afastar a obra, assinala também o movimento que se deve fazer em direção a esse impossível que, tal como em O castelo de Kafka, faz com que a idéia de que há um destino a cumprir seja concomitante com a certeza de sua impossibilidade. Tentar transpor o abismo produz a crítica como atividade, enriquece o seu patrimônio e, o que é mais importante, enriquece a fortuna das obras, fecundada esta pela certeza de que não se pode esgotá-la nem conduzi-la até o fim. Esse enriquecimento retrocede em direção à crítica, na forma de um acréscimo de autoconsciência, o qual se realiza no mundo segundo as circunstâncias e interesses de quem interpreta. A crítica pode então compreendê-lo como um simples aumento da fortuna crítica dos autores, ou como uma prova de que o movimento da interpretação progride mesmo no tempo (o que significa dizer que, teoricamente, hoje se saberia mais sobre as obras de Shakespeare do que na época áurea do teatro elisabetano) ou como simples prova de que esse movimento é de fato infinito.

 

Consciente de si no mais alto grau, não tem senão que se interrogar, mais uma vez, pelo seu próprio ser e por aquilo que, no universo das contingências, conforma e legitima esse ser. E que respostas a crítica pode dar a si mesma, quando se entrega a semelhante tarefa?

 

 

A voz da crítica

 

O esforço de constituição de uma linguagem autônoma da crítica – isto é, de uma linguagem que, voltada para o literário, não seja literária em si mesma – teve sua formulação mais influente, na modernidade, a partir do formalismo russo do início do século XX. Ao tentar definir o estatuto da literatura como disciplina independente, capaz de gerar os seus próprios conceitos e métodos, mas também de delimitar para si um objeto específico que não se confundisse com o das outras ciências humanas, a teoria formalista, na tentativa de redução, alargou o sulco do distanciamento. É o que mostram palavras como estas de Roman Jakobson, plenas de uma extremada confiança na distinção: “A Poética trata dos problemas da estrutura verbal, assim como a análise da pintura se ocupa da estrutura pictorial. Como a Lingüística é a ciência global da estrutura verbal, a Poética pode ser encarada como parte integrante da Lingüística” (JAKOBSON, 1975, p. 119).

 

Detenhamo-nos por um instante no argumento de que o formalismo se vale para fundar o domínio de sua atividade. A noção é bastante conhecida: sendo a linguagem passível de exercer funções variadas de acordo com as diversas situações ou contextos em que é empregada (função referencial, emotiva, etc.), a função que exerce será literária (poética) no momento em que a linguagem for empregada literariamente, isto é, no momento em que, na constituição da mensagem, a própria forma da mensagem for priorizada como tal ou se der a ver como forma. Mas isso não equivale a dizer que a mensagem só pode ser poética na medida em que há uma consciência que a perceba como poética ou que lhe atribua tal caráter? Caso existam, de fato, estruturas poéticas auto-subsistentes, cuja presença nas mensagens lhes daria o caráter poético que se postulou, tornando-as por conseguinte mensagens de teor literário, não caberia outra função à crítica do que partir em sua demanda dessas estruturas, no eterno esforço de sistematizá-las: “Todo o trabalho das escolas poéticas não é mais que a acumulação e revelação de novos procedimentos para dispor e elaborar o material verbal, e este consiste antes na disposição das imagens que na sua criação” (CHKLOVSKI, 1971, p. 41).

O esforço do formalismo esbarra, certamente, numa tautologia. Essa tautologia reside no fato de que nenhum literário pode ser postulado ou teorizado a-posteriori­, se não tivermos uma prévia consciência do mesmo. É na preocupação com o literário, na certeza e na confiança de sua existência, que se funda a tentativa de conhecê-lo e de esclarecê-lo teoricamente, o que significa um retorno circular ao ponto de partida da teoria. Por outros termos, equivaleria a dizer: é a partir das boas obras que chegamos a teorizar sobre boas obras, não se podendo admitir que somente pela teoria chegaremos a conhecer o que sejam ou não sejam as boas obras (caso elas existam). O raciocínio é primário, por certo, e está expresso de modo grosseiro. Entretanto, seja como for, tal certeza alimentou as esperanças de constituir um método formalista, o qual, uma vez fundado com base no argumento, daria início à tarefa de estudar a literatura em si mesma, conforme se deseja há muito, tomada já como o legítimo objeto da análise, da crítica e da teoria literária:

 

Sob a denominação geral e imprecisa de “método formal” geralmente são reunidos os trabalhos mais diversos, dedicados às questões da língua poética e do estilo no amplo sentido da palavra, à poética histórica e teórica, isto é, pesquisas métricas, “orquestração” e melódica, de história dos gêneros literários e estilos, etc. Dessa enumeração, que não pretende ser completa e sistemática, vê-se que seria por princípio mais correto falar, não sobre um novo método, mas sim, sobre novas tarefas de pesquisa, sobre um novo círculo de problemas científicos. (JIRMUNSKI, 1971, p. 57, grifos do original)

 

Evidentemente o argumento formalista girou em círculo, mas isso não impediu que se estabelecesse em definitivo na crítica moderna. De certo modo, todas as evoluções posteriores da teoria parecem subsumi-lo como uma evidência não provada, sendo possível até dizer que sem ele nada do que somos hoje se teria manifestado. É por ele – ou por uma suposição que dele se avizinha – que a crítica evolui ao longo do século XX, com os seus vários desdobramentos, contradições e impasses, chegando aos nossos dias com um vigor admirável. Por ele também é que alcança as universidades, ajudando a fundar os cursos de literatura e de teoria literária que todos conhecemos – aspiração nobre, que se alimenta da expectativa de responder objetivamente, num espaço em que o estudo da literatura se pode estabilizar numa profissão, a certo apelo do literário que parece cobrar uma resposta objetiva no âmbito prático das coisas. Que maior originalidade aportaram ao saber escolas de crítica como o New Criticism ou o estruturalismo, para citarmos essas duas, além do esforço de fundar em solo cada vez mais rigoroso e firme o que os formalistas só puderam pensar de modo insatisfatório? Acontece, porém, que, quanto mais se aprofunda a preocupação com o método e com os princípios, mais se escava e se alarga o sulco rasgado no começo, sem que se possa preenchê-lo depois com coisa alguma a não ser com as próprias esperanças que nele se alentaram. Citemos as palavras de um crítico:

 

É o caso da crítica, parenta da filosofia e da ciência, pela sua natureza analítica, interpretativa, discursiva. Atividade reflexiva, a matéria-prima sobre que atua é a literatura, o fenômeno literário, expresso pelos diversos gêneros. Por isso que ela incide sua mirada indagadora sobre os gêneros, deduziu-se abusivamente que ela é também gênero. Como se a ciência que estuda as flores com elas se confundisse.

A crítica literária tem por meta o estudo da literatura, dos gêneros, mas não é um deles. Ela os analisa, sem se confundir com eles. É uma atividade intelectual, reflexiva, usando o raciocínio lógico-formal, procurando adotar um método rigoroso, tanto quanto o das ciências, porém de acordo com a natureza do fenômeno que estuda, o fenômeno literário, a obra de arte da linguagem. É um método específico para um objeto específico. Não é uma atividade imaginativa, embora consinta no auxílio da imaginação; é uma atividade científica, sem utilizar os métodos das demais ciências (biológicas, físicas, naturais), nem se valer das suas leis ou conclusões; não é a filosofia, mas recorre ao raciocínio lógico-formal, para refletir sobre os fenômenos da arte da palavra.

Assim entendida, a crítica literária possui um campo de atuação que lhe é próprio e deve caminhar para o estabelecimento de técnicas de pesquisa e análise, e para métodos de interpretação e julgamento, que lhe são específicos, e também intransferíveis. (COUTINHO, 1976, p.92)

 

Minimamente, aduziríamos que o esforço de constituição de uma crítica autônoma, dona de um setor próprio de atuação e capaz de formalizar em conceitos ou em noções operativas o que supõe estar oculto no objeto, implica o esforço de conversão de uma linguagem em outra. Para falar de outro modo, seria como se o objeto em questão não pudesse ser outra coisa que linguagem a ser traduzida em linguagem. Mas pensar esse objeto como linguagem conduz para muito perto do argumento formalista da função poética do literário. Como provar, afinal, que a literatura é de fato uma linguagem e que essa linguagem pode ser estudada com instrumentos de análise cuja origem são os estudos da linguagem (entre os quais a lingüística) ou outros estudos confluentes? Pensemos, por um momento, essa conversão. O que quer a crítica ao reivindicar para si um estatuto definido – científico ou não –, senão tornar-se linguagem de um saber que a assim denominada literatura, os assim denominados textos da literatura por si próprios não podem prover? É necessária a crítica, supõe-se; ou então o esforço de sistematizar o que quer que seja a sua linguagem se achará condenado ao fracasso, desde que postulou, no ponto de partida, a inesgotabilidade ou a pura alteridade do objeto, sem poder depois abarcá-lo como um fato.

 

Seria muito dizer que a crítica não existe, porque tal assertiva equivaleria a dizer que certos livros (pensemos nos modelos célebres da Teoria da literatura, de Wellek e Warren, ou da Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser) não existem, e não estamos dispostos a abraçar esse empreendimento. No entanto é de acreditar que o esforço de criação de uma linguagem da crítica tem correspondido, desde há muito, à tentativa de constituir um espaço de conceitos ou de reflexão onde seja possível falar de literatura sem que se seja contaminado pelo que no objeto se afirma como apelo e dispersão, evidência e absoluta falta de senso, detectável, entre outros, na idéia de ficção ou de linguagem poética entendida como o domínio do “diverso”, do extraordinário ou do supra-racional. Também esta última noção – de que o poético é um outro, de que é uma linguagem que, fosse empregada pela crítica, geraria um curto circuito nas armações lógicas do sistema (não fosse expô-la – essa linguagem – ao ridículo) – surge como prova de que o esforço da crítica desde o formalismo tem sido de evitar as contaminações. Fazer poesia ao se tentar fazer crítica seria um erro, tal como confundir ficção e realidade. Igualmente, há uma literatura “absurda”, “fantástica”, que se vale dos meios mais irracionais para falar de um mundo que, no entanto, jamais deixou de ser o nosso ou de se parecer com o nosso. E o que são o metro e a rima senão artifícios ou modos de reforçar determinados aspectos das mensagens, que as tornam mais ricas ou mais profundas, contanto que não se perca o sentido do que se quer dizer? A crítica pode lidar com tudo isso de maneira sóbria, desde que elegeu o espaço da razão e do bom senso para armar a sua tenda, espaço onde cada coisa há de encontrar o seu lugar:

 

Uma utilização puramente literária e estética da estilística limita-a ao estudo de uma obra de arte ou de um grupo de obras que pretendamos descrever em função da sua finalidade estética e do seu significado. Somente no caso de ser primordial este interesse estético poderá a estilística fazer parte da investigação literária – e parte importante, porquanto apenas os métodos estilísticos logram definir as características específicas de uma obra literária. Existem dois métodos possíveis para empreender semelhante análise estilística. O primeiro consiste em agir por meio de uma análise sistemática do sistema lingüístico da obra e interpretar os seus traços, em função do seu objetivo estético, como reveladores de um «sentido total». (...) O segundo método – que aliás não contradiz o primeiro – consiste em estudar o conjunto de traços individuais que torna o seu sistema diferente de outros sistemas a ele comparáveis. (...) No discurso comunicativo ordinário não se chama a atenção para o som das palavras, ou para a ordem delas (...).Um primeiro passo na análise estilística consistirá em observar variações como as repetições de som, a inversão da ordem das palavras, a construção de elaboradas hierarquias de cláusulas; tudo isso deve estar ao serviço de alguma função estética, tal como a ênfase ou a clareza – ou os seus opostos, esteticamente justificados, que são o esfumar das distinções ou a obscuridade. (WELLEK e WARREN, 1971, p. 225)

 

Certamente não estamos a evocar certa atividade da crítica que, restrita às tarefas da exegese ou da anotação erudita de textos, não deixa de perseguir escopos mais modestos e bem delimitados. No entanto nem mesmo essa atividade poderia ser considerada como isenta de contaminações, desde que, surgindo de uma necessidade que se descobre no seio da literatura (seja ele qual for), sobre ele reverte parcialmente, para se consumar aí, no final, como uma atividade literária em si mesma. É no momento em que se converte numa outra coisa ou aspira a um algo mais (esse algo mais que ultrapassa a circunscrição das anotações de rodapé) que a crítica tem de se haver com o fato de que seu tesouro não é inteiramente seu. Confundida ou, para retomarmos o termo, contaminada por um poético e por um fictício cujos limites não se pôde traçar, não há como não pensar que a crítica não seja senão uma ficção ou uma atividade de cunho tão poético quanto o próprio poético que pretendeu estudar. Se há verdade ou mentira na ficção e na poesia estudadas (e poucos críticos estariam dispostos a admitir que seus tratados sejam apenas ficções ou invenções da fantasia, tal como podem admitir que certas narrativas o sejam), também não há por que acreditar que a crítica contém, pelo fato de se pensar como irmã da razão e do rigor (ou, em certos casos, da ciência), um estatuto de verdade preferível ao da mentira literária. Não há, pelo menos, por que acreditar que esse estatuto seja o apanágio daqueles que, resistindo às seduções da poesia, se crêem capazes de olhar para ela com mente lúcida e espírito isento.

 

Com efeito, desde o momento em que se pôs a lidar com ficções, a crítica já se tornou uma ficção ela também – e num sentido que nos dispensamos de provar. E essa idéia não pode ser contraditada por nenhum argumento, a não ser que se recorra de novo àquele que, insistindo na distância entre a crítica e a literatura, volta a recavar o sulco, na esperança de que as coisas não se passem exatamente dessa maneira:

 

A linguagem da ciência é a linguagem da comunicação e suas proposições (...) supõem uma correspondência unívoca entre significante e significado. Mas a língua poética não é comunicativa; pelo menos, não tão diretamente. Suas proposições têm significados polivalente e não demonstram, de maneira alguma, um objeto singular ou uma doutrina que fossem exteriores ao poema. Cleanth Brooks tem em mente essa mesma ilusão da mensagem quando denuncia a “heresia da paráfrase”. Para Brooks, não existe conteúdo de paráfrase no poema. A descrição dos efeitos gerais do poema, aquilo que forma o seu tema é perfeitamente exeqüível, mas não necessariamente interessante, já que “a paráfrase não constitui o verdadeiro núcleo de significação em que se situa a essência do poema”. (COHEN, 1983, p. 13)

 

Também o argumento de que a crítica não se confunde com o seu objeto – tal como, na linguagem de Afrânio Coutinho, a ciência que estuda as flores não se deve confundir com as mesmas – parece uma facilitação. Não seria, vista por esse ângulo, a própria ausência de fundamento ou a intenção de denunciá-la uma tentativa de fundamentar? É de suspeitar que qualquer analogia seja intrusa neste ponto. Além do que, não há nada que garanta, no que diz respeito ao argumento, que o emprego de metáforas ou de comparações com o mundo natural ofereça provas efetivas de que o mesmo esteja a acontecer no ambiente da literatura. Igualmente, a pretensão de seriedade ou a ilusão de que estudar este ou aquele aspecto da literatura – que se descobre na assim dita crítica profissional – permite um conhecimento mais profundo da mesma desmorona quando se pensa que a própria segurança com que se isolaram certos aspectos (quaisquer que sejam eles) carece de fundamento. De que maneira os distinguiremos daquilo que é inerente ao sistema (da crítica) ou como recortá-los, na forma de realidades palpáveis, em meio à linguagem da crítica, provando que, com efeito, e segundo as regras do método, correspondem a qualidades efetivas do objeto postulado?

 

Decerto, nada se poderia provar. Mas, se se tenta de novo, se um novo ponto de partida pode ser encontrado a cada nova tentativa, tem-se a impressão de que alguma coisa se formou. Julga-se, por fim, que tudo o que se precisa fazer (como o comprova a vasta floração de escolas e de teorias da crítica aparecidas no século XX) é reajustar ou calibrar melhor os instrumentos e partir de novo em demanda. A literatura, aberta às incursões, parece estar lá, à espera de quem a queira perscrutar, esclarecer, justificar ou desmascarar, quaisquer que sejam os instrumentos.

 

 

A questão do sentido

 

Caso se insista em pensar que a crítica existe como linguagem, a pergunta ainda seria: para que serve ela? Para que traduzir em linguagem do bom senso ou da lógica linear (para não falarmos das tentativas mais positivistas de redução, como a que se detecta no livro de Umberto Eco) o que nas obras é ficção, mentira, fruição descompromissada ou simples contra-senso? Ou é justo acreditar, como fazem tantos, que a crítica, seja qual for a sua função, nos ajuda mesmo a ler, a entender ou a conhecer melhor a literatura, como se disso esta última não se pudesse encarregar por si própria? Em tal perspectiva, pelo simples fato de que as obras já são uma forma de linguagem – ou são capazes de incorporar em si todas as modalidades da linguagem falada –, não haveria justificativa para a pretensão de ajudá-las a falar recorrendo a um espaço secundário – o da crítica – onde haveria maior clareza, objetividade ou estabilidade.

 

Contudo pode ser que a pergunta não esteja bem colocada. Seria impossível negar, evidentemente, que a literatura dirige um apelo ao leitor e que um dos modos (mas não o único) de responder a esse apelo é erigir um monumento crítico em sua homenagem. Esse monumento corresponderia, por um lado, a certo tipo de resposta que se pode dar à literatura, seja ela adequada ou não, fundada ou não em pressupostos científicos, positivistas, imanentistas ou outros. Neste ponto, seria preciso considerar nem tanto a natureza do apelo, mas a sua simples possibilidade, que é o que parece estar na origem de toda a crítica praticada no Ocidente desde Aristóteles e, em especial, na raiz das críticas do século XX. Tal apelo não pode ser negado, e a questão talvez esteja em que, a depender do modo como se responde a ele, se poderá ter tal e tal modalidade de crítica, tal e tal desenvolvimento da teoria. Ora, pensá-lo na forma de possibilidades – como prefere fazer a crítica que aposta na multiplicidade dos sentidos – tem, pelo menos, uma implicação, que é a de ocultar o fato de que o que se pensa ali em termos de múltiplo não é senão a manifestação (para usarmos a linguagem da filosofia) de uma única possibilidade, ou da pura possibilidade. Sem ela, nenhum sentido ou nenhuma leitura se tornaria possível, isto é, nenhuma obra se abriria ao esforço da interpretação. E, se pensar a possibilidade não nos leva em direção ao múltiplo, mas nos faz retornar a esse momento (aqui, sim) de abertura inaugural, então é preciso dizer que o apelo da obra se dá tanto na forma de uma abertura (para o sentido e para a interpretação), quanto de uma possibilidade efetiva do sentido. E possibilidade efetiva não quer dizer abertura a uma “resposta livre e inventiva” – como quis Umberto Eco – do leitor, como se a arbitrariedade fosse um valor a cultivar, senão àquela única resposta possível, que é a que o leitor deve dar à obra e na qual, por assim dizer, aposta todo o seu ser.

 

Essa exigência do sentido é que parece dominar a seguinte passagem, de Benedeto Croce, comentada por Eco em seu livro Obra aberta:

 

(...) nela [na representação artística] o singular palpita pela vida do todo, e o todo está na vida do singular; e toda representação artística autêntica é ela mesma e o universo, o universo naquela forma individual, e aquela forma individual enquanto o universo. Em cada palavra de poeta, em cada criação de sua fantasia, está todo o destino humano, todas as esperanças, as ilusões, as dores, as alegrias, as grandezas e as misérias humanas, o inteiro drama do real, que acontece e cresce continuamente sobre si mesmo, sofrendo e alegrando-se (CROCE, 2001, p. 127-128[2])

 

Quando Croce sugere que “dar ao conteúdo sentimental a forma artística é (...) dar-lhe ao mesmo tempo a marca da totalidade, o aflato cósmico” (CROCE, 2001, p. 129), não basta, para fugir a essa exigência de totalidade a que a literatura nos sujeita (que, por certo, não exprimiríamos com as mesmas palavras), dominada pelo sentido, responder-lhe, como o faz Eco (1976, p. 69), que falta ao seu pensamento uma “fundação categorial capaz de alicerçá-lo” ou que o filósofo “não nos fornece instrumentos filosóficos aptos a estabelecerem o nexo que sugere”, como se se pudesse apor à exigência do sentido – que é uma exigência “concreta” do que se lê – uma exigência científica ou (equivocadamente) filosófica qualquer, fundada num pressuposto. Não se trata de invocar razões filosóficas convincentes para explicar o que quer que seja, mas de trazer de novo para um solo de reflexão fascinado por certo ímpeto de sistematização o que – qualquer que seja a sua implicação – não pode ser reduzido a um teorema. Trata-se, antes, de pensar as coisas numa dimensão mais alta – ou simplesmente mais imediata –, conforme Croce parece intuir, a única capaz de devolver à literatura certas ressonâncias morais ou éticas que, fora dessas ressonâncias, a teoria da abertura, fascinada pelo seu próprio relativismo, não é capaz de lhe perceber.

 

Os que postulam a teoria da multissignificação cometem, a nosso ver, o erro de concluírem muito depressa a partir de termos que se originam mais nas articulações da teoria do que numa real atenção ao apelo que a literatura nos dirige. Tome-se como exemplo a teoria de Wolfgang Iser, referente às reações do leitor e aos vazios do texto quando lê e “reconstrói” o sentido. De que maneira diremos que a obra oferece vazios ao leitor, senão aceitando que esses vazios nada mais são do que isso mesmo – isto é, uma sorte de nada que o leitor deve incorporar ao movimento da compreensão? O esforço de Iser, nesse particular, qualquer que seja o seu sentido, há de soar como uma tentativa de usurpação, desde que, postulando a possibilidade dos vazios, postula a presença de um leitor que não os vive como tais, mas que tenta operar com eles num outro nível – o nível das possibilidades –, enquanto o crítico, agarrado ao rochedo da teoria, denuncia o aspecto quixotesco dessas operações, pois as percebe como tentativas de preencher os vazios. Para essa teoria, será preciso considerar a existência de um espaço amplo e aberto de multiplicidade – as possibilidades de preencher os hiatos, que se realizariam historicamente segundo as circunstâncias da recepção – e um espaço de neutralidade, situado acima da história, no qual se localizaria a crítica, a única em condições de perceber o movimento da contingência. E aqui talvez se deva considerar também a necessidade em que se achará o crítico de que, mesmo para ele (o super-leitor capaz de todas as aberturas), a literatura tenha algum sentido e de que esse sentido anteceda qualquer esforço de teorização.

 

Quando se trata de lidar com obras concretas (livros de verdade), e não com abstrações, é de se supor que a literatura faça sentido para o crítico, mesmo que esse fazer sentido o conduza a pensar a obra como uma rede de vazios ou alguma coisa equivalente (o que seria de sua inteira responsabilidade), como se lê neste trecho, escrito por Iser:

 

(...) Em conseqüência, os vazios dão origem a imagens de primeiro e segundo grau. Imagens de segundo grau são aquelas com as quais reagimos às imagens formadas. Isso pode ser ilustrado com o exemplo do Tom Jones de Fielding. Quando o capitão Blifil engana Allworthy, os segmentos que ligam as perspectivas diferentes dos dois personagens provocam a idéia de que o discernimento do homem perfeito muitas vezes falha porque ele confia nas aparências. Mas esta idéia logo tem de ser abandonada, quando o herói vende o cavalo que Allworthy lhe dera. Os dois pedagogos se horrorizam com a evidente baixeza de tal ato. Alworthy, ao contrário, perdoa Tom, pois, a despeito das aparências, compreende o bom motivo desta ação. Assim a idéia e que é falho o discernimento do homem perfeito deve ser abandonada, pois tal não sucede com Allworthy; o que falta em seu julgamento é a abstração necessária de suas próprias atitudes. O bom homem reconhece a bondade dos outros, apesar da falsa aparência; mas crê na falsa aparência quando ela finge procurar o bem. Forma-se desse modo uma segunda imagem, que, ao mesmo tempo, ilumina o tema do romance: o leitor deve adquirir um sense of discerniment, e isso requer a capacidade de abstrair-se de suas próprias atitudes, para que ganhe a distância necessária ao julgamento de seu próprio modo de orientação. (ISER, 1979, p. 111)

 

Supor que a reação de um leitor hipotético diante da obra será esta ou aquela ou que tais e tais operações deverão ser executadas no momento da leitura – adquirir por exemplo um sense of discerniment que requer “a capacidade de abstrair-se de suas próprias atitudes, para que ganhe a distância necessária ao julgamento de seu próprio modo de orientação”, ou simplesmente não realizar nada dessas operações – poderá ser tudo, mas será, sempre, uma tentativa de atribuir sentido. Pode ser que, na teoria, conforme a compreende Iser, exista também uma tentativa de invadir a consciência do outro, propondo-lhe um caminho que, se diz respeito à interpretação, nada tem a ver com o sentido, pois o coloca em suspenso para ter a ilusão de flutuar sobre ele. Essa tentativa marca, até onde pensamos, e a despeito das melhores intenções de seus formuladores, toda a chamada estética da recepção fundada por Jauss nos anos 60. E marca-a pela simples razão de que, do ponto de vista imediato, não parece levar em conta a necessidade, em que cedo desembocará (e de que talvez não se dê conta), de reduzir a consciência alheia às dimensões de uma teoria – e de uma teoria que não a considera como um fato ou uma realidade. É o que observamos também neste fragmento, de Karlheinz Stierle:

 

A diferença entre os estatutos dos discursos ficcional e pragmático não se mostra necessariamente na recepção efetiva dos textos ficcionais. Há uma forma de recepção dos textos ficcionais que se pode denominar de recepção quase pragmática. Na recepção quase pragmática, o texto ficcional é ultrapassado em direção a uma ilusão extratextual, despertada no leitor pelo texto. A ilusão como resultado da recepção quase pragmática dos textos ficcionais é uma extratextualidade, comparável à recepção pragmática, que, ultrapassando o texto, se volta para o próprio campo da ação. A ilusão é, por assim dizer, a forma diluída da ficção, que, na realidade quase pragmática, se separa de sua base de articulação, sem que venha a ocupar um lugar no campo de ação extratextual do leitor real. (STIERLE, 1979, p. 148)

 

Dessa mesma ordem de considerações é ainda a seguinte afirmativa, formulada por Wellek e Warren, acerca de dois livros de Gogol:

 

No seu tempo, “O Capote” e as Almas mortas de Gogol foram interpretados erroneamente, ao que parece, até por críticos inteligentes. E, contudo, o entendimento de que essas obras eram propaganda – interpretação errada, mas compreensível em função de algumas passagens e de elementos isolados – dificilmente pode conciliar-se com a complexidade da sua organização literária, com os seus complicados processos de ironia, paródia, jogos de palavras, pantomima e imitação. (WELLEK e WARREN, 1971, p.303)

 

Ao afirmar que o leitor realiza tais e tais operações, a crítica precisa, no mínimo, pressupor o ato de realizá-las. E tal suposição, que divide o ato em duas metades – aquele da “leitura” que o outro faz e aquele da crítica que comenta, corrige, aprofunda ou simplesmente esclarece essa leitura –, coloca em evidência o momento da crítica como consciência de alguma coisa. Do mesmo modo como a postulação da abertura significativa afasta a crítica de seu objeto, a tentativa de ver por fora a interpretação do outro ou o sentido que o outro concede à obra que lê suscita não já a pergunta pelo conteúdo ou adequação dessa leitura, mas pelo que a própria crítica, que a interroga, pode pensar como leitura. Qual o estatuto dessa visada que, ao dar um passo para fora, parece querer isentar-se da necessidade (sem a qual não poderia operar) de atribuir sentido ao que observa? Seja postulando a abertura (que acaba se convertendo na pretensão de se poder operar sem atribuir sentido nenhum), seja compreendendo a obra como “texto” e o “texto” como entrelaçado de vazios, a crítica falseia o movimento em que se lançou. Julgando então se libertar e adquirir maior destreza para apreender melhor o movimento, não percebe que este já lhe escapou desde o começo. Ou então se ganha finalmente – na possibilidade do sentido atribuído –, mas sem se dar conta de que esse gesto é aquele que antecede o movimento do pensar, ao invés, simplesmente, de resultar dele como um fruto que quisesse antecipar-se à floração, como conclui Eco nesta passagem:

 

Nesta linha, grande parte da literatura contemporânea baseia-se no uso do símbolo como comunicação do indefinido, aberta a reações e compreensões sempre novas. Facilmente podemos pensar na obra de Kafka como uma obra “aberta” por excelência: processo, castelo, espera, condenação, doença, metamorfose, tortura, não são situações a serem entendidas em seu significado literal e imediato. Mas, ao contrário das construções alegóricas medievais, aqui os sobre-sentidos não são dados de modo unívoco, não são garantidos por enciclopédia alguma, não repousam sobre nenhuma ordem do mundo. As várias interpretações, existencialistas, teológicas, clínicas, psicanalíticas dos símbolos kafkianos só em parte esgotam as possibilidades da obra: na realidade, a obra permanece inesgotada e aberta enquanto “ambígua”, pois a um mundo ordenado segundo leis universalmente reconhecidas substituiu-se um mundo fundado sobre a ambigüidade, quer no sentido negativo de uma carência de centros de orientação, quer no sentido positivo de uma contínua revisibilidade dos valores e das certezas. (ECO, 1976, p. 46-47)

 

E o que são “processo, castelo, espera, condenação, doença, metamorfose, tortura” senão isso mesmo – ou é preciso usá-los como “símbolos”, “metáforas” de outras coisas que por si mesmas não se podem dizer como tais? Pode ser que nesse caso se queira converter a obscuridade em alguma coisa, interpretando-a como inerente ao modo de ser das “mensagens” de cunho poético. No entanto, mesmo para elegê-las e realizar certas escolhas, ou tirar certas conclusões, é preciso atribuir um sentido àquilo que se lê – sentido que, escamoteado pelo raciocínio de Eco e da teoria da recepção (e por certa ligeireza de conclusões que caracteriza esse raciocínio), aparece ali como uma evidência que não se deve mencionar.

 

Duas implicações por certo derivarão de tudo isso. A primeira é que (para nos referirmos a certo setor da crítica praticada no século XX), ao tentar converter o gesto de pensar a obra literária em estratégias de análise, alguma coisa se perde. E o que se perde é exatamente o liame que une o instante da atribuição de sentido ao seu desdobramento em análise, ou que une o elemento que torna a análise possível àquilo que a análise pretende julgar. Freqüentemente se procederá como se tal ordenação estivesse invertida, considerando-se então como resultado da análise o que não é senão o seu ponto de origem (como é fácil de comprovar, por exemplo, pelo exame das análises estruturalistas). Como admitir que determinadas estruturas ou processos de construção produzem certos efeitos, certos resultados de caráter estilístico, se não pudermos, de antemão, atribuir sentido a essas estruturas e a esses processos, tomando os efeitos como partes ou derivações efetivas do sentido, ou, melhor, como sentido eles mesmos, incorporado ao sentido, e não só como possibilidades a serem preenchidas? Mas, se a ordem dos fatos foi invertida, não há nada a fazer senão concluir que os efeitos antecedem as causas ou que o sentido é, afinal, resultado daquilo que só se tornou possível porque houve um sentido que o orientou.

 

A segunda implicação diz respeito à relação do leitor com a obra, relação cuja verdade ainda não se esclareceu inteiramente. O modo usual de se enfocá-la é fazendo-se uma distinção (demasiado nítida, por certo) entre autor, obra e leitor – tríade que certamente remete às teorias da informação, mas sobre a qual é provável que a leitura, o ato de ler, em sua intimidade, nada saiba. E o que quer dizer isso – que a leitura (para empregarmos um termo que se tornou lugar-comum da crítica literária) nada sabe sobre as distinções que a teoria estabelece? De certo modo, se a relação do leitor com o sentido é uma relação de possibilidade (e, ao mesmo tempo, de negatividade, conforme o teria pensado Maurice Blanchot), o sentido só pode ser uma afirmação, isto é, aquele sim que o leitor diz à leitura e com o qual, seja qual for o desdobramento que se lhe dê, se compromete e se arrisca. Esse arriscar-se não teria, evidentemente, nada a ver com as preocupações de acerto ou de erro da interpretação, nem mesmo diria respeito à capacidade individual de compreender ou de decifrar convenientemente as palavras ou as intenções dos escritores. Refere-se, antes, ao modo absorvente, infinitamente sério (no sentido de um comprometimento individual) como nos lançamos à leitura e como a obra vem ao nosso encontro – modo pelo qual nos dispomos a viver ou a morrer (se quisermos usar uma expressão rigorosa), conforme também a maneira como encaremos o risco e as exigências que nos impõe.

 

Os trechos que mencionamos, de Iser, Stierle e Wellek e Warren, comprovam que, mesmo para a crítica dita profissional, não há alternativa senão responder ao sentido, arriscando-se e comprometendo-se com ele, aceitando-o ou rejeitando-o, segundo circunstâncias que não dispensam nem minimizam a necessidade de se comprometer. As tentativas de postular uma teoria do sentido nada mais são, assim, que o esboço de uma resposta a essa exigência, por mais que tenda, num extremo, a se fechar em si mesma.

 

 

As duas respostas da crítica

 

É certo que, ao se postular a noção de que a obra literária é uma potencialidade do sentido ou de que as estruturas que a sustentam se abrem para um sentido múltiplo, indefinidamente conversível em ato, mas jamais inteiramente acessível em potência, se cava um sulco entre a crítica e o seu objeto que as tentativas posteriores de sistematização não poderão recobrir. Admitindo a sua própria falência, restaria à crítica ou saltar de novo, às cegas, em direção ao objeto ou tentar, em seu próprio território, construir uma teoria do sentido (conforme o fazem a estética da recepção e outras estéticas) em que o sentido esteja ausente ou seja sempre postergado. Esta visada, que lança a crítica para fora da história (desde que, a julgar pelas teorias, somente o sentido seria histórico, não o sendo a teoria que lhe estuda os mecanismos), reduz a sua tarefa às estreitezas da análise. E a análise, pelos próprios termos em que é postulada, ou não pode chegar ao sentido ou, se tenta chegar a ele, é com a certeza de vê-lo escapar no final. Ou a crítica deve, mesmo, na dança das interpretações, escolher um sentido e, ao mesmo tempo, postular a possibilidade do múltiplo, como se, ao fazê-lo, a tarefa de dar sentido lhe fosse poupada ou se visse minada por um tipo de consciência que a enxergasse por fora, vendo a sua falsidade no momento em que descobre que não tem outra coisa a que se agarrar?

 

Mas, se admitimos que, ao contrário do que julgam as teorias da abertura e da multiplicidade, o sentido é determinado e que nenhuma teoria se pode constituir senão a partir de tal determinação (seja ela qual for), então a crítica poderia responder à pergunta acerca de suas exigências (ou tarefas) de duas maneiras. A primeira seria: se não nos resta senão admitir que toda leitura é um salto em direção ao sentido e se não nos resta senão reconhecer que nada se forma fora do sentido, então a tarefa e a justificativa da crítica estariam em acolher esse sentido, em ecoá-lo ou expandi-lo, mas permanecendo nele enquanto exista o que ler. Não seria uma tarefa especial, que se conceberia “por fora” da literatura, mas uma tarefa da própria literatura, da qual seria prova o fato de que as próprias obras são de algum modo manifestações de crítica, seja esta explícita ou não, mas sempre inerente à sua constituição e ao seu modo íntimo de ser, conforme reivindicam os seus autores.

 

Por outro lado, se essa resposta ameaça dissolver a crítica ou faz supor que tudo seja crítica em literatura, então se poderia pensar que a atitude da crítica – de uma outra crítica cujo estatuto não se chega a conceber totalmente – não é tanto aquela que se projeta para o futuro, num salto que garante o devir da possibilidade aberta pelo sentido (esta seria, por exemplo, a tendência em que se engajaria, a nosso ver, a crítica dita militante), mas em retroceder sobre seus próprios passos e ganhar o seu futuro como uma dimensão que incorpora o passado e o presente, abrindo-se enfim ao gesto do pensamento como aproximação desarmada. A crítica, nessa acepção, se manifestaria como conhecimento de alguma coisa – e não tanto como teoria ou sistema dessa coisa –, libertando-se dos fardos e das amarras que lhe têm imposto a tarefa de analisar ou o esforço de interpretar (para não falarmos, no caso da crítica militante, da tarefa de valorizar e de julgar, sem ser ela mesma julgada no julgamento). Assim, poderia realizar-se como concretude, isto é, como esforço que, partindo da concretude do que se tem (e não tanto do que se postula) e caminhando na segurança de seus próprios passos, chegaria ao futuro sem depender das promessas – jamais realizadas – da teoria e da análise.

 

A tendência hodierna a pensar que a literatura seja passível de uma pluralidade de interpretações, ou que seja aberta ao arbítrio das “leituras” num sentido que não leva em conta as suas exigências centrais (e que a deixa à deriva no fluxo da história e no suceder-se das mentalidades), marca, sem dúvida, um momento em que a autoconsciência da crítica parece ter atingido um extremo. Ao postular que entre a apreensão do sentido (evitemos fazer certas distinções inoportunas) e o sentido apreendido vai a distância da multiplicidade, a tendência aponta para o fato de que, no esforço de fundar a crítica como uma atividade independente, autônoma e capaz de ratificar os seus próprios termos de funcionamento, alguma coisa se evadiu. Não falaremos das pretensões – tão comuns nos anos 40 e 50 do século passado – a fundar a crítica como uma atividade a ser exercida no território da ciência ou de lhe conceder estatutos que, derivados do que se julga ser a ciência, lhe dariam a consistência e a capacidade de verdade que tanto se desejou alcançar. Essa noção corresponde, não há dúvidas, às aspirações de um século em que a ciência alcançou prestígio considerável, mas é de supor também que, fora do campo de sua eficácia, esse prestígio não deve ser confundido com a última palavra da verdade.

 

Postular a possibilidade do sentido único não quer dizer postular a idéia de um sentido definitivo, estável e acabado de uma vez por todas. A experiência do leitor provavelmente o proibiria. Há, na teoria da linguagem, um preceito que manda distinguir entre sentido e significado, o qual, se não pode ser de todo provado, poderia pelo menos ser invocado neste ponto. A opção pelo sentido único diz respeito, assim, ao fato de que a relação do leitor com a obra passa pelo sentido e de que esse sentido não se confunde exatamente com a decifração do significado ou com a perspectiva de se ter, no âmbito da leitura, uma boa ou má compreensão do que a obra oferece. Antes, é possível pensar que a possibilidade de um sentido evanescente faz parte do modo de se oferecer à interpretação da obra literária, dizendo respeito à capacidade ou disposição de cada indivíduo para experimentá-lo, segundo circunstâncias que só a ele dizem respeito. Tendo a ver apenas com esse momento de abertura da obra para a interpretação, para a compreensão e para a experiência, o sentido se revela como sendo isto que a obra me endereça, tornando-se sentido para mim, qualquer que seja a minha relação com o significado ou com a clareza (ou obscuridade) da interpretação que me caiba. E, por ser sentido para mim, não há como delegar a outro a responsabilidade que me compete diante dele, bem como não há como usurpar do outro essa responsabilidade, conforme a teoria moderna e certas histórias da literatura tentam fazer.

 

O estatuto da crítica poderia ser buscado, caso queiramos insistir na questão, naquele território que lhe pertence por direito e que a crítica só começa a percorrer quando, ao se perguntar pelo seu estatuto, começa a existir (numa acepção que escapa às reduções historicistas) como consciência de si mesma e de sua própria verdade interior. Essa consciência jamais poderia advir-lhe da postulação de um objeto impossível, difuso, aberto ao fluxo da história, mas do fato de estar voltada para esse objeto e – num sentido mais profundo – de ser ela mesma esse objeto, no movimento da acolhida e da experimentação, que são intransferíveis e vitais.

 

As duas respostas ora aventadas não têm, evidentemente, o objetivo de resolver um problema ou de dar à crítica um novo tema ou uma nova formulação. Ao contrário: se é verdadeiro aquilo que enunciam, ou se existe qualquer possibilidade de que o venha a ser algum dia, estaria em consonância com elas o não as tomar como definitivas ou não reduzi-las a fórmulas, que sempre se encontram nas bases das escolas de crítica. Tal atitude poderia incorporar, pelo menos, o espírito da segunda resposta – aquela que diz que a crítica não se faz com o apoio das fórmulas ou com a aflição incessante de resolver problemas, de sintetizar conceitos e de criar métodos, mas do ato mesmo de criticar.

 

Se o reduzir-se a fórmulas, se a pretensão do sistema, no que diz respeito à literatura, não podem ser entendidos, conforme dissemos, senão como pertencendo à ordem da ficção e da poesia (com a qual a crítica sistemática não quer se confundir), então o estatuto da crítica estaria na própria literatura – tomada tal palavra num sentido que não carece de conceituação nem de prova. É a partir daí, acreditamos, e somente a partir daí, que poderemos pensá-la como atividade possível, justa e razoável do espírito, em sua vocação para a liberdade e para a verdade.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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STIERLE, Karlheinz. Que significa a recepção dos textos ficcionais. In: JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor; textos de estética da recepção. Coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Tradução de José Palla e Carmo. 2. ed. Lisboa: Europa-América, 1971.

 

Guarapuava, outubro de 2003.

 



[1] Publicado originalmente em Analecta (Revista do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da UNICENTRO), Guarapuava, v. 5, n. 1, p. 93-110, 2004. (retorna)

 

[2] Na edição brasileira, o trecho aparece à página 69, com variações de tradução. (retorna)

 

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