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AS
DUAS RESPOSTAS DA CRÍTICA [1]
(Renato
Suttana)
Abertura
Parece
ter-se tornado um lugar-comum da crítica literária admitir que a
poesia – ou o poético, mais especificamente – constitui uma espécie
de linguagem e que tal linguagem é marcada pela indeterminação. A
primeira parte da noção tem alimentado as esperanças de muitos, e
a segunda lhes tem oferecido conforto. Ao imaginar que o poético é
uma linguagem, a crítica se coloca, de novo, a caminho,
pondo-se a inquirir o que vem a ser essa linguagem (ou o que pode vir a exprimir). Ao mesmo tempo, aparece para si mesma como um
problema: admitindo que o poético, uma vez colocado em questão, se
realiza como uma abertura, uma disponibilidade de sentido que não
somente o possibilita como poético, mas que, mais do que isso, o
torna passível de crítica e de comentário (já que – seria de
acreditar – nenhuma crítica se pode estabelecer senão na possibilidade
instaurada pela abertura), a crítica encontra aí o seu momento
inaugural. É a perspectiva de preencher o hiato ou de se alimentar
do que a abertura provê que a põe em movimento e lhe dá uma
justificação. E se não pode, no final, transpor o abismo
implicado, isso não diz respeito a uma mera contingência de métodos
ou a certa deficiência detectável na tecnologia dos conceitos.
Antes, mostra que, ao eleger o impasse como seu lugar de origem,
esse é o único espaço que ela tem a percorrer e que o recomeço
é, de fato, o seu verdadeiro quinhão.
A
noção de abertura é correlata, modernamente, à noção de que o
movimento da literatura se corporifica, no âmbito da interpretação,
numa dupla polaridade, que vai da obra criticada à linguagem da crítica
que a interpreta. A esse respeito, quem nunca terá ouvido, mesmo da
boca dos mais sapientes, a afirmação de que a obra literária está,
quanto à possibilidade de lhe captarmos os sentidos mais recônditos
(ou certa significação essencial de que não se pode abrir mão),
muito adiante da crítica que sobre ela se debruça? A idéia,
porém – que não deve ser subestimada –, apenas aprofunda o
impasse. Revela, pelo menos, que a crítica, ao conceber a abertura
como seu espaço de origem, desde sempre se tem concebido como
impossibilidade. Tomada como empreendimento que de antemão já se
condenou ao fracasso, não lhe resta senão retomar a cada vez o
trabalho de Sísifo da teoria e da perquirição, o qual nenhuma
esperança de final abençoa. Pode, na liberdade que reivindica de
avançar e de interpretar, terminar o que começou? Ouçamos o que
tem a dizer um de seus arautos mais proeminentes na modernidade:
A
poética da obra “aberta” tende, como diz Pousser, a promover no
intérprete “atos de liberdade” consciente, pô-lo como centro
ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele
instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade
que lhe prescreva os modos definitivos de organização da obra fruída;
mas (apoiando-nos naquele significado mais amplo do termo
“abertura” que mencionamos antes) poder-se-ia objetar que
qualquer obra de arte, embora não se entregue inteiramente
inacabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não
poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a
reinventar num ato de congenialidade com o autor. (ECO, 1976, p. 41,
grifo do original)
Se
as palavras de Umberto Eco elogiam certa poética do inacabado ou do
lúdico que hoje em dia se tornou corriqueira, a insistência na idéia
de que a obra literária – ou, para usarmos um termo familiar à
teoria, o texto da literatura – é uma potencialidade da
forma, que permanece à espera da colaboração de outrem para se
converter em ato, remete ela mesma ao cerne do problema. Não se
trata apenas de exigir uma resposta ou de dirigir ao leitor uma
pergunta que o converterá em interlocutor ou cúmplice do jogo,
cuja participação realiza o potencial de inacabado da obra.
Trata-se de suscitar no outro uma reação, que deve ser
“livre”, “inventiva”, conforme a disposição de cada um em
participar. Ao mesmo tempo, atrai-se para a intimidade da obra
(aceitemos o termo, por enquanto) aquele que deve ficar afastado
dela, isto é, impedido de incorporá-la em si na vertigem tenebrosa
do mesmo e da indistinção. Esse afastamento tem sido
fundamental para o pensamento da crítica. Insistindo na abertura e
na multiplicidade, a nitidez da distinção – obra de um lado e crítica
do outro – preserva a integridade de um eu e de um ele
que não se devem confundir. É também aquilo que, mantendo
afastados os pólos (sem os quais não haveria interpretação nem
comentário) e transformando a obra em objeto de análise,
permite à crítica a possibilidade de constituir-se como linguagem.
A obra, a partir da abertura, só pode falar se for mantido o esforço
da distinção ou se – conservando-se desobstruído o caminho que
leva o leitor a se converter numa espécie de co-autor ou de
parceiro de autoria – a integridade dos espaços não for
comprometida.
Mas
não vai nisso um excesso de otimismo, uma excessiva confiança nos
poderes do pensamento que, do lado do objeto, nada parece autorizar?
Falando de certas relações que o leitor mantém com a obra literária
e teorizando sobre o elemento catártico da fruição estética,
também o alemão Jauss – que se diria um pouco menos confiante do
que Eco – parece ter cedido às tentações da multiplicidade. Ao
concluir que o prazer da leitura não se dá apenas como uma excrescência,
como o resultado de uma abordagem de cunho hedonista da literatura
– que aqueles que se mantêm fiéis aos compromissos (humanos,
ideológicos, sociais) da arte tendem a menosprezar –, argumentou
que o prazer se assenta num fator de abertura. O fato de que a obra
seja aberta (não tanto no sentido que Eco concedeu à expressão,
mas no sentido de que é um todo passível de múltiplas interpretações)
e remeta sempre a um mais além que a crítica não pode
alcançar (pelo menos, sem destruir a liberdade da leitura), se
apresenta para Jauss como garantia de seu futuro. Sobretudo,
sustenta a necessidade de sobrevivência da literatura, quando esta
atravessa as vicissitudes da história e se compromete com a
precariedade do comentário:
As
três categorias básicas da experiência estética, poiesis,
aisthesis e katharsis não devem ser vistas numa
hierarquia de camadas, mas sim como uma relação de funções autônomas:
não se subordinam umas às outras, mas podem estabelecer relações
de seqüência. Em face de sua própria obra, o criador pode assumir
o papel de observador ou de leitor; sentirá então a mudança de
sua atitude, ao passar da poiesis para a aisthesis,
diante da contradição de não poder, ao mesmo tempo, produzir e
receber, escrever e ler. Quando o leitor contemporâneo ou as gerações
posteriores receberem o texto, revelar-se-á o hiato quanto à poiesis,
pois o autor não pode subordinar a recepção ao propósito com que
compusera a obra: a obra realizada desdobra, na aisthesis e
na interpretação sucessivas, uma multiplicidade de significados
que, de muito, ultrapassa o horizonte de sua origem. (JAUSS, 1979,
p. 81)
Ao
fazer com que a abertura impregne o momento de origem da obra, o
conceito de Jauss tende a interpretá-la como uma qualidade
absoluta, sem a qual a história da recepção não seria
possível nem as interpretações se concretizariam. Mas, depois de
tudo, ainda nos perguntaríamos: e é mesmo a história que ameaça
desmoronar ou não teria sido apenas a crítica que, ao tentar se
constituir como atividade autônoma da cultura – capaz de criar
uma linguagem própria, para a qual as obras literárias existem
de algum modo, como possibilidade de um sentido que não se deve
esgotar – que usurpou o primeiro plano das preocupações?
A
crítica, neste ponto, não pode senão reconhecer o seu fracasso, o
seu caráter de contingência, bem como a incapacidade em que sempre
se achou de ser uma linguagem à altura do objeto. Quando muito,
poderia reservar-se um lugar – situado à distância tanto do histórico
quanto do literário – que permitiria, como na estética de Jauss,
julgar a contingência for fora, pesando os compromissos e, quem
sabe, reconhecendo neles as falácias da pretensão de verdade. Se
as interpretações e as leituras variam conforme a constituição e
a atitude dos tempos, aquilo que as torna possíveis deve permanecer
intocado – e não só porque falte verdade à tentativa de abarcá-lo
(por qualquer meio que seja), mas porque o jamais atingi-lo é
inerente ao empreendimento da crítica, manifestando-se no processo
como garantia de integridade: “O observador pode considerar o
objeto estético como incompleto, sair de sua atitude contemplativa
e converter-se em co-criador da obra, à medida que conclui a
concretização de sua forma e de seu significado” (JAUSS, 1979,
p. 82).
Mas
como concretizar a forma ou o significado, se aquilo que o objeto
concede ao observador já se perdeu há muito no sulco aberto pela
multiplicidade?
A
postulação de que a obra está à frente da crítica e de
que a interpretação não esgota o seu sentido final – não
importando o que contenha de verdade ou de inverdade – é o
pressuposto que permite demarcar o território da crítica como
território independente. Ao afastar a obra, assinala também o
movimento que se deve fazer em direção a esse impossível que, tal
como em O castelo de Kafka, faz com que a idéia de que há
um destino a cumprir seja concomitante com a certeza de sua
impossibilidade. Tentar transpor o abismo produz a crítica como
atividade, enriquece o seu patrimônio e, o que é mais importante,
enriquece a fortuna das obras, fecundada esta pela certeza de que não
se pode esgotá-la nem conduzi-la até o fim. Esse enriquecimento
retrocede em direção à crítica, na forma de um acréscimo de
autoconsciência, o qual se realiza no mundo segundo as circunstâncias
e interesses de quem interpreta. A crítica pode então compreendê-lo
como um simples aumento da fortuna crítica dos autores, ou como uma
prova de que o movimento da interpretação progride mesmo
no tempo (o que significa dizer que, teoricamente, hoje se
saberia mais sobre as obras de Shakespeare do que na época
áurea do teatro elisabetano) ou como simples prova de que esse
movimento é de fato infinito.
Consciente
de si no mais alto grau, não tem senão que se interrogar, mais uma
vez, pelo seu próprio ser e por aquilo que, no universo das contingências,
conforma e legitima esse ser. E que respostas a crítica pode dar a
si mesma, quando se entrega a semelhante tarefa?
A
voz da crítica
O
esforço de constituição de uma linguagem autônoma da crítica
– isto é, de uma linguagem que, voltada para o literário, não
seja literária em si mesma – teve sua formulação mais
influente, na modernidade, a partir do formalismo russo do início
do século XX. Ao tentar definir o estatuto da literatura como
disciplina independente, capaz de gerar os seus próprios conceitos
e métodos, mas também de delimitar para si um objeto específico
que não se confundisse com o das outras ciências humanas, a teoria
formalista, na tentativa de redução, alargou o sulco do
distanciamento. É o que mostram palavras como estas de Roman
Jakobson, plenas de uma extremada confiança na distinção: “A Poética
trata dos problemas da estrutura verbal, assim como a análise da
pintura se ocupa da estrutura pictorial. Como a Lingüística é a
ciência global da estrutura verbal, a Poética pode ser encarada
como parte integrante da Lingüística” (JAKOBSON, 1975, p. 119).
Detenhamo-nos
por um instante no argumento de que o formalismo se vale para fundar
o domínio de sua atividade. A noção é bastante conhecida: sendo
a linguagem passível de exercer funções variadas de acordo com as
diversas situações ou contextos em que é empregada (função
referencial, emotiva, etc.), a função que exerce será literária
(poética) no momento em que a linguagem for empregada
literariamente, isto é, no momento em que, na constituição da
mensagem, a própria forma da mensagem for priorizada como tal ou se
der a ver como forma. Mas isso não equivale a dizer que a mensagem
só pode ser poética na medida em que há uma consciência que a
perceba como poética ou que lhe atribua tal caráter? Caso existam,
de fato, estruturas poéticas auto-subsistentes, cuja presença nas
mensagens lhes daria o caráter poético que se postulou,
tornando-as por conseguinte mensagens de teor literário, não
caberia outra função à crítica do que partir em sua demanda
dessas estruturas, no eterno esforço de sistematizá-las: “Todo
o trabalho das escolas poéticas não é mais que a acumulação e
revelação de novos procedimentos para dispor e elaborar o material
verbal, e este consiste antes na disposição das imagens que na sua
criação” (CHKLOVSKI, 1971, p. 41).
O
esforço do formalismo esbarra, certamente, numa tautologia. Essa
tautologia reside no fato de que nenhum literário pode ser
postulado ou teorizado a-posteriori, se não tivermos uma
prévia consciência do mesmo. É na preocupação com o literário,
na certeza e na confiança de sua existência, que se funda a
tentativa de conhecê-lo e de esclarecê-lo teoricamente, o que
significa um retorno circular ao ponto de partida da teoria. Por
outros termos, equivaleria a dizer: é a partir das boas obras que
chegamos a teorizar sobre boas obras, não se podendo admitir que
somente pela teoria chegaremos a conhecer o que sejam ou não sejam
as boas obras (caso elas existam). O raciocínio é primário, por
certo, e está expresso de modo grosseiro. Entretanto, seja como
for, tal certeza alimentou as esperanças de constituir um método
formalista, o qual, uma vez fundado com base no argumento, daria início
à tarefa de estudar a literatura em si mesma, conforme se
deseja há muito, tomada já como o legítimo objeto da análise, da
crítica e da teoria literária:
Sob
a denominação geral e imprecisa de “método formal” geralmente
são reunidos os trabalhos mais diversos, dedicados às questões da
língua poética e do estilo no amplo sentido da palavra, à poética
histórica e teórica, isto é, pesquisas métricas, “orquestração”
e melódica, de história dos gêneros literários e estilos, etc.
Dessa enumeração, que não pretende ser completa e sistemática, vê-se
que seria por princípio mais correto falar, não sobre um novo método,
mas sim, sobre novas tarefas de pesquisa, sobre um novo círculo
de problemas científicos. (JIRMUNSKI, 1971, p. 57, grifos do
original)
Evidentemente
o argumento formalista girou em círculo, mas isso não impediu que
se estabelecesse em definitivo na crítica moderna. De certo modo,
todas as evoluções posteriores da teoria parecem subsumi-lo como
uma evidência não provada, sendo possível até dizer que sem ele
nada do que somos hoje se teria manifestado. É por ele – ou por
uma suposição que dele se avizinha – que a crítica evolui
ao longo do século XX, com os seus vários desdobramentos, contradições
e impasses, chegando aos nossos dias com um vigor admirável. Por
ele também é que alcança as universidades, ajudando a fundar os
cursos de literatura e de teoria literária que todos conhecemos –
aspiração nobre, que se alimenta da expectativa de responder
objetivamente, num espaço em que o estudo da literatura se pode
estabilizar numa profissão, a certo apelo do literário que parece
cobrar uma resposta objetiva no âmbito prático das coisas. Que
maior originalidade aportaram ao saber escolas de crítica como o New
Criticism ou o estruturalismo, para citarmos essas duas, além
do esforço de fundar em solo cada vez mais rigoroso e firme o que
os formalistas só puderam pensar de modo insatisfatório? Acontece,
porém, que, quanto mais se aprofunda a preocupação com o método
e com os princípios, mais se escava e se alarga o sulco rasgado no
começo, sem que se possa preenchê-lo depois com coisa alguma a não
ser com as próprias esperanças que nele se alentaram. Citemos as
palavras de um crítico:
É
o caso da crítica, parenta da filosofia e da ciência, pela sua
natureza analítica, interpretativa, discursiva. Atividade
reflexiva, a matéria-prima sobre que atua é a literatura, o fenômeno
literário, expresso pelos diversos gêneros. Por isso que ela
incide sua mirada indagadora sobre os gêneros, deduziu-se
abusivamente que ela é também gênero. Como se a ciência que
estuda as flores com elas se confundisse.
A
crítica literária tem por meta o estudo da literatura, dos gêneros,
mas não é um deles. Ela os analisa, sem se confundir com eles. É
uma atividade intelectual, reflexiva, usando o raciocínio lógico-formal,
procurando adotar um método rigoroso, tanto quanto o das ciências,
porém de acordo com a natureza do fenômeno que estuda, o fenômeno
literário, a obra de arte da linguagem. É um método específico
para um objeto específico. Não é uma atividade imaginativa,
embora consinta no auxílio da imaginação; é uma atividade científica,
sem utilizar os métodos das demais ciências (biológicas, físicas,
naturais), nem se valer das suas leis ou conclusões; não é a
filosofia, mas recorre ao raciocínio lógico-formal, para refletir
sobre os fenômenos da arte da palavra.
Assim
entendida, a crítica literária possui um campo de atuação que
lhe é próprio e deve caminhar para o estabelecimento de técnicas
de pesquisa e análise, e para métodos de interpretação e
julgamento, que lhe são específicos, e também intransferíveis.
(COUTINHO, 1976, p.92)
Minimamente,
aduziríamos que o esforço de constituição de uma crítica autônoma,
dona de um setor próprio de atuação e capaz de formalizar em
conceitos ou em noções operativas o que supõe estar oculto no
objeto, implica o esforço de conversão de uma linguagem em outra.
Para falar de outro modo, seria como se o objeto em questão não
pudesse ser outra coisa que linguagem a ser traduzida em linguagem.
Mas pensar esse objeto como linguagem conduz para muito perto do
argumento formalista da função poética do literário. Como
provar, afinal, que a literatura é de fato uma linguagem e que essa
linguagem pode ser estudada com instrumentos de análise cuja origem
são os estudos da linguagem (entre os quais a lingüística) ou
outros estudos confluentes? Pensemos, por um momento, essa conversão.
O que quer a crítica ao reivindicar para si um estatuto definido
– científico ou não –, senão tornar-se linguagem de um saber
que a assim denominada literatura, os assim denominados textos da
literatura por si próprios não podem prover? É necessária a crítica,
supõe-se; ou então o esforço de sistematizar o que quer que seja
a sua linguagem se achará condenado ao fracasso, desde que
postulou, no ponto de partida, a inesgotabilidade ou a pura
alteridade do objeto, sem poder depois abarcá-lo como um fato.
Seria
muito dizer que a crítica não existe, porque tal assertiva
equivaleria a dizer que certos livros (pensemos nos modelos célebres
da Teoria da literatura, de Wellek e Warren, ou da Análise
e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser) não
existem, e não estamos dispostos a abraçar esse empreendimento. No
entanto é de acreditar que o esforço de criação de uma linguagem
da crítica tem correspondido, desde há muito, à tentativa de
constituir um espaço de conceitos ou de reflexão onde seja possível
falar de literatura sem que se seja contaminado pelo que no objeto
se afirma como apelo e dispersão, evidência e absoluta falta de
senso, detectável, entre outros, na idéia de ficção ou de
linguagem poética entendida como o domínio do
“diverso”, do extraordinário ou do supra-racional. Também esta
última noção – de que o poético é um outro, de que é uma
linguagem que, fosse empregada pela crítica, geraria um curto
circuito nas armações lógicas do sistema (não fosse expô-la –
essa linguagem – ao ridículo) – surge como prova de que o esforço
da crítica desde o formalismo tem sido de evitar as contaminações.
Fazer poesia ao se tentar fazer crítica seria um erro, tal como
confundir ficção e realidade. Igualmente, há uma literatura
“absurda”, “fantástica”, que se vale dos meios mais
irracionais para falar de um mundo que, no entanto, jamais deixou de
ser o nosso ou de se parecer com o nosso. E o que são o metro e a
rima senão artifícios ou modos de reforçar determinados aspectos
das mensagens, que as tornam mais ricas ou mais profundas, contanto
que não se perca o sentido do que se quer dizer? A crítica pode
lidar com tudo isso de maneira sóbria, desde que elegeu o espaço
da razão e do bom senso para armar a sua tenda, espaço onde cada
coisa há de encontrar o seu lugar:
Uma
utilização puramente literária e estética da estilística
limita-a ao estudo de uma obra de arte ou de um grupo de obras que
pretendamos descrever em função da sua finalidade estética e do
seu significado. Somente no caso de ser primordial este interesse
estético poderá a estilística fazer parte da investigação literária
– e parte importante, porquanto apenas os métodos estilísticos
logram definir as características específicas de uma obra literária.
Existem dois métodos possíveis para empreender semelhante análise
estilística. O primeiro consiste em agir por meio de uma análise
sistemática do sistema lingüístico da obra e interpretar os seus
traços, em função do seu objetivo estético, como reveladores de
um «sentido total». (...) O segundo método – que aliás não
contradiz o primeiro – consiste em estudar o conjunto de traços
individuais que torna o seu sistema diferente de outros sistemas a
ele comparáveis. (...) No discurso comunicativo ordinário não se
chama a atenção para o som das palavras, ou para a ordem delas
(...).Um primeiro passo na análise estilística consistirá em
observar variações como as repetições de som, a inversão da
ordem das palavras, a construção de elaboradas hierarquias de cláusulas;
tudo isso deve estar ao serviço de alguma função estética, tal
como a ênfase ou a clareza – ou os seus opostos, esteticamente
justificados, que são o esfumar das distinções ou a obscuridade. (WELLEK
e WARREN, 1971, p. 225)
Certamente
não estamos a evocar certa atividade da crítica que, restrita às
tarefas da exegese ou da anotação erudita de textos, não deixa de
perseguir escopos mais modestos e bem delimitados. No entanto nem
mesmo essa atividade poderia ser considerada como isenta de
contaminações, desde que, surgindo de uma necessidade que se
descobre no seio da literatura (seja ele qual for), sobre ele
reverte parcialmente, para se consumar aí, no final, como uma
atividade literária em si mesma. É no momento em que se converte
numa outra coisa ou aspira a um algo mais (esse algo mais
que ultrapassa a circunscrição das anotações de rodapé) que a
crítica tem de se haver com o fato de que seu tesouro não é
inteiramente seu. Confundida ou, para retomarmos o termo,
contaminada por um poético e por um fictício cujos limites não se
pôde traçar, não há como não pensar que a crítica não seja
senão uma ficção ou uma atividade de cunho tão poético quanto o
próprio poético que pretendeu estudar. Se há verdade ou mentira
na ficção e na poesia estudadas (e poucos críticos estariam
dispostos a admitir que seus tratados sejam apenas ficções ou
invenções da fantasia, tal como podem admitir que certas
narrativas o sejam), também não há por que acreditar que a crítica
contém, pelo fato de se pensar como irmã da razão e do rigor (ou,
em certos casos, da ciência), um estatuto de verdade preferível ao
da mentira literária. Não há, pelo menos, por que acreditar que
esse estatuto seja o apanágio daqueles que, resistindo às seduções
da poesia, se crêem capazes de olhar para ela com mente lúcida e
espírito isento.
Com
efeito, desde o momento em que se pôs a lidar com ficções, a crítica
já se tornou uma ficção ela também – e num sentido que nos
dispensamos de provar. E essa idéia não pode ser contraditada por
nenhum argumento, a não ser que se recorra de novo àquele que,
insistindo na distância entre a crítica e a literatura, volta a
recavar o sulco, na esperança de que as coisas não se passem
exatamente dessa maneira:
A
linguagem da ciência é a linguagem da comunicação e suas proposições
(...) supõem uma correspondência unívoca entre significante e
significado. Mas a língua poética não é comunicativa; pelo
menos, não tão diretamente. Suas proposições têm significados
polivalente e não demonstram, de maneira alguma, um objeto singular
ou uma doutrina que fossem exteriores ao poema. Cleanth Brooks tem
em mente essa mesma ilusão da mensagem quando denuncia a “heresia
da paráfrase”. Para Brooks, não existe conteúdo de paráfrase
no poema. A descrição dos efeitos gerais do poema, aquilo que
forma o seu tema é perfeitamente exeqüível, mas não
necessariamente interessante, já que “a paráfrase não constitui
o verdadeiro núcleo de significação em que se situa a essência
do poema”. (COHEN, 1983, p. 13)
Também
o argumento de que a crítica não se confunde com o seu objeto –
tal como, na linguagem de Afrânio Coutinho, a ciência que estuda
as flores não se deve confundir com as mesmas – parece uma
facilitação. Não seria, vista por esse ângulo, a própria ausência
de fundamento ou a intenção de denunciá-la uma tentativa de
fundamentar? É de suspeitar que qualquer analogia seja intrusa
neste ponto. Além do que, não há nada que garanta, no que diz
respeito ao argumento, que o emprego de metáforas ou de comparações
com o mundo natural ofereça provas efetivas de que o mesmo esteja a
acontecer no ambiente da literatura. Igualmente, a pretensão de
seriedade ou a ilusão de que estudar este ou aquele aspecto da
literatura – que se descobre na assim dita crítica profissional
– permite um conhecimento mais profundo da mesma desmorona quando
se pensa que a própria segurança com que se isolaram certos
aspectos (quaisquer que sejam eles) carece de fundamento. De que
maneira os distinguiremos daquilo que é inerente ao sistema (da crítica)
ou como recortá-los, na forma de realidades palpáveis, em meio à
linguagem da crítica, provando que, com efeito, e segundo as regras
do método, correspondem a qualidades efetivas do objeto postulado?
Decerto,
nada se poderia provar. Mas, se se tenta de novo, se um novo ponto
de partida pode ser encontrado a cada nova tentativa, tem-se a
impressão de que alguma coisa se formou. Julga-se, por fim, que
tudo o que se precisa fazer (como o comprova a vasta floração de
escolas e de teorias da crítica aparecidas no século XX) é
reajustar ou calibrar melhor os instrumentos e partir de novo em
demanda. A literatura, aberta às incursões, parece estar lá, à
espera de quem a queira perscrutar, esclarecer, justificar ou
desmascarar, quaisquer que sejam os instrumentos.
A
questão do sentido
Caso
se insista em pensar que a crítica existe como linguagem, a
pergunta ainda seria: para que serve ela? Para que traduzir em
linguagem do bom senso ou da lógica linear (para não falarmos das
tentativas mais positivistas de redução, como a que se detecta no
livro de Umberto Eco) o que nas obras é ficção, mentira, fruição
descompromissada ou simples contra-senso? Ou é justo acreditar,
como fazem tantos, que a crítica, seja qual for a sua função, nos
ajuda mesmo a ler, a entender ou a conhecer melhor a literatura,
como se disso esta última não se pudesse encarregar por si própria?
Em tal perspectiva, pelo simples fato de que as obras já são uma
forma de linguagem – ou são capazes de incorporar em si todas as
modalidades da linguagem falada –, não haveria justificativa para
a pretensão de ajudá-las a falar recorrendo a um espaço secundário
– o da crítica – onde haveria maior clareza, objetividade ou
estabilidade.
Contudo
pode ser que a pergunta não esteja bem colocada. Seria impossível
negar, evidentemente, que a literatura dirige um apelo ao leitor e
que um dos modos (mas não o único) de responder a esse apelo é
erigir um monumento crítico em sua homenagem. Esse monumento
corresponderia, por um lado, a certo tipo de resposta que se pode
dar à literatura, seja ela adequada ou não, fundada ou não em
pressupostos científicos, positivistas, imanentistas ou outros.
Neste ponto, seria preciso considerar nem tanto a natureza do apelo,
mas a sua simples possibilidade, que é o que parece estar na origem
de toda a crítica praticada no Ocidente desde Aristóteles e, em
especial, na raiz das críticas do século XX. Tal apelo não pode
ser negado, e a questão talvez esteja em que, a depender do modo
como se responde a ele, se poderá ter tal e tal modalidade de crítica,
tal e tal desenvolvimento da teoria. Ora, pensá-lo na forma de
possibilidades – como prefere fazer a crítica que aposta na
multiplicidade dos sentidos – tem, pelo menos, uma implicação,
que é a de ocultar o fato de que o que se pensa ali em termos de múltiplo
não é senão a manifestação (para usarmos a linguagem da
filosofia) de uma única possibilidade, ou da pura possibilidade.
Sem ela, nenhum sentido ou nenhuma leitura se tornaria possível,
isto é, nenhuma obra se abriria ao esforço da interpretação. E,
se pensar a possibilidade não nos leva em direção ao múltiplo,
mas nos faz retornar a esse momento (aqui, sim) de abertura
inaugural, então é preciso dizer que o apelo da obra se dá tanto
na forma de uma abertura (para o sentido e para a interpretação),
quanto de uma possibilidade efetiva do sentido. E
possibilidade efetiva não quer dizer abertura a uma “resposta
livre e inventiva” – como quis Umberto Eco – do leitor, como
se a arbitrariedade fosse um valor a cultivar, senão àquela única
resposta possível, que é a que o leitor deve dar à obra e na
qual, por assim dizer, aposta todo o seu ser.
Essa
exigência do sentido é que parece dominar a seguinte passagem, de
Benedeto Croce, comentada por Eco em seu livro Obra aberta:
(...)
nela [na representação artística] o singular palpita pela vida do
todo, e o todo está na vida do singular; e toda representação artística
autêntica é ela mesma e o universo, o universo naquela forma
individual, e aquela forma individual enquanto o universo. Em cada
palavra de poeta, em cada criação de sua fantasia, está todo o
destino humano, todas as esperanças, as ilusões, as dores, as
alegrias, as grandezas e as misérias humanas, o inteiro drama do
real, que acontece e cresce continuamente sobre si mesmo, sofrendo e
alegrando-se (CROCE, 2001, p. 127-128)
Quando
Croce sugere que “dar ao conteúdo sentimental a forma artística
é (...) dar-lhe ao mesmo tempo a marca da totalidade, o aflato cósmico”
(CROCE, 2001, p. 129), não basta, para fugir a essa exigência de
totalidade a que a literatura nos sujeita (que, por certo, não
exprimiríamos com as mesmas palavras), dominada pelo sentido,
responder-lhe, como o faz Eco (1976, p. 69), que falta ao seu
pensamento uma “fundação categorial capaz de alicerçá-lo” ou
que o filósofo “não nos fornece instrumentos filosóficos aptos
a estabelecerem o nexo que sugere”, como se se pudesse apor à
exigência do sentido – que é uma exigência “concreta” do
que se lê – uma exigência científica ou (equivocadamente) filosófica
qualquer, fundada num pressuposto. Não se trata de invocar razões
filosóficas convincentes para explicar o que quer que seja, mas de
trazer de novo para um solo de reflexão fascinado por certo ímpeto
de sistematização o que – qualquer que seja a sua implicação
– não pode ser reduzido a um teorema. Trata-se, antes, de pensar
as coisas numa dimensão mais alta – ou simplesmente mais imediata
–, conforme Croce parece intuir, a única capaz de devolver à
literatura certas ressonâncias morais ou éticas que, fora dessas
ressonâncias, a teoria da abertura, fascinada pelo seu próprio
relativismo, não é capaz de lhe perceber.
Os
que postulam a teoria da multissignificação cometem, a nosso ver,
o erro de concluírem muito depressa a partir de termos que se
originam mais nas articulações da teoria do que numa real atenção
ao apelo que a literatura nos dirige. Tome-se como exemplo a teoria
de Wolfgang Iser, referente às reações do leitor e aos vazios do
texto quando lê e “reconstrói” o sentido. De que maneira
diremos que a obra oferece vazios ao leitor, senão aceitando que
esses vazios nada mais são do que isso mesmo – isto é, uma sorte
de nada que o leitor deve incorporar ao movimento da
compreensão? O esforço de Iser, nesse particular, qualquer que
seja o seu sentido, há de soar como uma tentativa de usurpação,
desde que, postulando a possibilidade dos vazios, postula a presença
de um leitor que não os vive como tais, mas que tenta operar com
eles num outro nível – o nível das possibilidades –, enquanto
o crítico, agarrado ao rochedo da teoria, denuncia o aspecto
quixotesco dessas operações, pois as percebe como tentativas de
preencher os vazios. Para essa teoria, será preciso considerar a
existência de um espaço amplo e aberto de multiplicidade – as
possibilidades de preencher os hiatos, que se realizariam
historicamente segundo as circunstâncias da recepção – e um
espaço de neutralidade, situado acima da história, no qual se
localizaria a crítica, a única em condições de perceber o
movimento da contingência. E aqui talvez se deva considerar também
a necessidade em que se achará o crítico de que, mesmo para ele (o
super-leitor capaz de todas as aberturas), a literatura tenha algum
sentido e de que esse sentido anteceda qualquer esforço de teorização.
Quando
se trata de lidar com obras concretas (livros de verdade), e não
com abstrações, é de se supor que a literatura faça sentido para
o crítico, mesmo que esse fazer sentido o conduza a pensar a obra
como uma rede de vazios ou alguma coisa equivalente (o que seria de
sua inteira responsabilidade), como se lê neste trecho, escrito por
Iser:
(...)
Em conseqüência, os vazios dão origem a imagens de primeiro e
segundo grau. Imagens de segundo grau são aquelas com as quais
reagimos às imagens formadas. Isso pode ser ilustrado com o exemplo
do Tom Jones de Fielding. Quando o capitão Blifil engana
Allworthy, os segmentos que ligam as perspectivas diferentes dos
dois personagens provocam a idéia de que o discernimento do homem
perfeito muitas vezes falha porque ele confia nas aparências. Mas
esta idéia logo tem de ser abandonada, quando o herói vende o
cavalo que Allworthy lhe dera. Os dois pedagogos se horrorizam com a
evidente baixeza de tal ato. Alworthy, ao contrário, perdoa Tom,
pois, a despeito das aparências, compreende o bom motivo desta ação.
Assim a idéia e que é falho o discernimento do homem perfeito deve
ser abandonada, pois tal não sucede com Allworthy; o que falta em
seu julgamento é a abstração necessária de suas próprias
atitudes. O bom homem reconhece a bondade dos outros, apesar da
falsa aparência; mas crê na falsa aparência quando ela finge
procurar o bem. Forma-se desse modo uma segunda imagem, que, ao
mesmo tempo, ilumina o tema do romance: o leitor deve adquirir um sense
of discerniment, e isso requer a capacidade de abstrair-se de
suas próprias atitudes, para que ganhe a distância necessária ao
julgamento de seu próprio modo de orientação. (ISER, 1979, p.
111)
Supor
que a reação de um leitor hipotético diante da obra será esta ou
aquela ou que tais e tais operações deverão ser executadas no
momento da leitura – adquirir por exemplo um sense of
discerniment que requer “a capacidade de abstrair-se de suas
próprias atitudes, para que ganhe a distância necessária ao
julgamento de seu próprio modo de orientação”, ou simplesmente
não realizar nada dessas operações – poderá ser tudo, mas será,
sempre, uma tentativa de atribuir sentido. Pode ser que, na teoria,
conforme a compreende Iser, exista também uma tentativa de invadir
a consciência do outro, propondo-lhe um caminho que, se diz
respeito à interpretação, nada tem a ver com o sentido, pois o
coloca em suspenso para ter a ilusão de flutuar sobre ele. Essa
tentativa marca, até onde pensamos, e a despeito das melhores intenções
de seus formuladores, toda a chamada estética da recepção fundada
por Jauss nos anos 60. E marca-a pela simples razão de que, do
ponto de vista imediato, não parece levar em conta a necessidade,
em que cedo desembocará (e de que talvez não se dê conta), de
reduzir a consciência alheia às dimensões de uma teoria – e de
uma teoria que não a considera como um fato ou uma realidade. É o
que observamos também neste fragmento, de Karlheinz
Stierle:
A
diferença entre os estatutos dos discursos ficcional e pragmático
não se mostra necessariamente na recepção efetiva dos textos
ficcionais. Há uma forma de recepção dos textos ficcionais que se
pode denominar de recepção quase pragmática. Na recepção
quase pragmática, o texto ficcional é ultrapassado em direção a
uma ilusão extratextual, despertada no leitor pelo texto. A ilusão
como resultado da recepção quase pragmática dos textos ficcionais
é uma extratextualidade, comparável à recepção pragmática,
que, ultrapassando o texto, se volta para o próprio campo da ação.
A ilusão é, por assim dizer, a forma diluída da ficção, que, na
realidade quase pragmática, se separa de sua base de articulação,
sem que venha a ocupar um lugar no campo de ação extratextual do
leitor real. (STIERLE, 1979, p. 148)
Dessa
mesma ordem de considerações é ainda a seguinte afirmativa,
formulada por Wellek e Warren, acerca de dois livros de Gogol:
No
seu tempo, “O Capote” e as Almas mortas de Gogol foram interpretados erroneamente, ao que
parece, até por críticos inteligentes. E, contudo, o entendimento
de que essas obras eram propaganda – interpretação errada, mas
compreensível em função de algumas passagens e de elementos
isolados – dificilmente pode conciliar-se com a complexidade da
sua organização literária, com os seus complicados processos de
ironia, paródia, jogos de palavras, pantomima e imitação. (WELLEK
e WARREN, 1971, p.303)
Ao
afirmar que o leitor realiza tais e tais operações, a crítica
precisa, no mínimo, pressupor o ato de realizá-las. E tal suposição,
que divide o ato em duas metades – aquele da “leitura” que o
outro faz e aquele da crítica que comenta, corrige, aprofunda ou
simplesmente esclarece essa leitura –, coloca em evidência o
momento da crítica como consciência de alguma coisa. Do mesmo modo
como a postulação da abertura significativa afasta a crítica de
seu objeto, a tentativa de ver por fora a interpretação do outro
ou o sentido que o outro concede à obra que lê suscita não já a
pergunta pelo conteúdo ou adequação dessa leitura, mas pelo que a
própria crítica, que a interroga, pode pensar como leitura. Qual o
estatuto dessa visada que, ao dar um passo para fora, parece querer
isentar-se da necessidade (sem a qual não poderia operar) de
atribuir sentido ao que observa? Seja postulando a abertura (que
acaba se convertendo na pretensão de se poder operar sem atribuir
sentido nenhum), seja compreendendo a obra como “texto” e o
“texto” como entrelaçado de vazios, a crítica falseia o
movimento em que se lançou. Julgando então se libertar e adquirir
maior destreza para apreender melhor o movimento, não percebe que
este já lhe escapou desde o começo. Ou então se ganha finalmente
– na possibilidade do sentido atribuído –, mas sem se dar conta
de que esse gesto é aquele que antecede o movimento do pensar, ao
invés, simplesmente, de resultar dele como um fruto que quisesse
antecipar-se à floração, como conclui Eco nesta passagem:
Nesta
linha, grande parte da literatura contemporânea baseia-se no uso do
símbolo como comunicação do indefinido, aberta a reações e
compreensões sempre novas. Facilmente podemos pensar na obra de
Kafka como uma obra “aberta” por excelência: processo, castelo,
espera, condenação, doença, metamorfose, tortura, não são situações
a serem entendidas em seu significado literal e imediato. Mas, ao
contrário das construções alegóricas medievais, aqui os
sobre-sentidos não são dados de modo unívoco, não são
garantidos por enciclopédia alguma, não repousam sobre nenhuma
ordem do mundo. As várias interpretações, existencialistas, teológicas,
clínicas, psicanalíticas dos símbolos kafkianos só em parte
esgotam as possibilidades da obra: na realidade, a obra permanece
inesgotada e aberta enquanto “ambígua”, pois a um mundo
ordenado segundo leis universalmente reconhecidas substituiu-se um
mundo fundado sobre a ambigüidade, quer no sentido negativo de uma
carência de centros de orientação, quer no sentido positivo de
uma contínua revisibilidade dos valores e das certezas. (ECO, 1976,
p. 46-47)
E
o que são “processo, castelo, espera, condenação, doença,
metamorfose, tortura” senão isso mesmo – ou é preciso usá-los
como “símbolos”, “metáforas” de outras coisas que por si
mesmas não se podem dizer como tais? Pode ser que nesse caso se
queira converter a obscuridade em alguma coisa, interpretando-a como
inerente ao modo de ser das “mensagens” de cunho poético. No
entanto, mesmo para elegê-las e realizar certas escolhas, ou tirar
certas conclusões, é preciso atribuir um sentido àquilo que se lê
– sentido que, escamoteado pelo raciocínio de Eco e da teoria da
recepção (e por certa ligeireza de conclusões que caracteriza
esse raciocínio), aparece ali como uma evidência que não se deve
mencionar.
Duas
implicações por certo derivarão de tudo isso. A primeira é que
(para nos referirmos a certo setor da crítica praticada no século
XX), ao tentar converter o gesto de pensar a obra literária em
estratégias de análise, alguma coisa se perde. E o que se perde é
exatamente o liame que une o instante da atribuição de sentido ao
seu desdobramento em análise, ou que une o elemento que torna a análise
possível àquilo que a análise pretende julgar. Freqüentemente se
procederá como se tal ordenação estivesse invertida,
considerando-se então como resultado da análise o que não é senão
o seu ponto de origem (como é fácil de comprovar, por exemplo,
pelo exame das análises estruturalistas). Como admitir que
determinadas estruturas ou processos de construção produzem certos
efeitos, certos resultados de caráter estilístico, se não
pudermos, de antemão, atribuir sentido a essas estruturas e a esses
processos, tomando os efeitos como partes ou derivações efetivas
do sentido, ou, melhor, como sentido eles mesmos, incorporado
ao sentido, e não só como possibilidades a serem preenchidas? Mas,
se a ordem dos fatos foi invertida, não há nada a fazer senão
concluir que os efeitos antecedem as causas ou que o sentido é,
afinal, resultado daquilo que só se tornou possível porque houve
um sentido que o orientou.
A
segunda implicação diz respeito à relação do leitor com a obra,
relação cuja verdade ainda não se esclareceu inteiramente. O modo
usual de se enfocá-la é fazendo-se uma distinção (demasiado nítida,
por certo) entre autor, obra e leitor – tríade que certamente
remete às teorias da informação, mas sobre a qual é provável
que a leitura, o ato de ler, em sua intimidade, nada saiba. E o que
quer dizer isso – que a leitura (para empregarmos um termo que se
tornou lugar-comum da crítica literária) nada sabe sobre as distinções
que a teoria estabelece? De certo modo, se a relação do leitor com
o sentido é uma relação de possibilidade (e, ao mesmo
tempo, de negatividade, conforme o teria pensado Maurice Blanchot),
o sentido só pode ser uma afirmação, isto é, aquele sim
que o leitor diz à leitura e com o qual, seja qual for o
desdobramento que se lhe dê, se compromete e se arrisca. Esse
arriscar-se não teria, evidentemente, nada a ver com as preocupações
de acerto ou de erro da interpretação, nem mesmo diria respeito à
capacidade individual de compreender ou de decifrar convenientemente
as palavras ou as intenções dos escritores. Refere-se, antes, ao
modo absorvente, infinitamente sério (no sentido de um
comprometimento individual) como nos lançamos à leitura e como a
obra vem ao nosso encontro – modo pelo qual nos dispomos a viver
ou a morrer (se quisermos usar uma expressão rigorosa), conforme
também a maneira como encaremos o risco e as exigências que nos
impõe.
Os
trechos que mencionamos, de Iser, Stierle e Wellek e Warren,
comprovam que, mesmo para a crítica dita profissional, não há
alternativa senão responder ao sentido, arriscando-se e
comprometendo-se com ele, aceitando-o ou rejeitando-o, segundo
circunstâncias que não dispensam nem minimizam a necessidade de se
comprometer. As tentativas de postular uma teoria do sentido nada
mais são, assim, que o esboço de uma resposta a essa exigência,
por mais que tenda, num extremo, a se fechar em si mesma.
As
duas respostas da crítica
É
certo que, ao se postular a noção de que a obra literária é uma
potencialidade do sentido ou de que as estruturas que a sustentam se
abrem para um sentido múltiplo, indefinidamente conversível em
ato, mas jamais inteiramente acessível em potência, se cava um
sulco entre a crítica e o seu objeto que as tentativas posteriores
de sistematização não poderão recobrir. Admitindo a sua própria
falência, restaria à crítica ou saltar de novo, às cegas, em
direção ao objeto ou tentar, em seu próprio território,
construir uma teoria do sentido (conforme o fazem a estética da
recepção e outras estéticas) em que o sentido esteja ausente ou
seja sempre postergado. Esta visada, que lança a crítica para fora
da história (desde que, a julgar pelas teorias, somente o sentido
seria histórico, não o sendo a teoria que lhe estuda os
mecanismos), reduz a sua tarefa às estreitezas da análise. E a análise,
pelos próprios termos em que é postulada, ou não pode chegar ao
sentido ou, se tenta chegar a ele, é com a certeza de vê-lo
escapar no final. Ou a crítica deve, mesmo, na dança das
interpretações, escolher um sentido e, ao mesmo tempo, postular a
possibilidade do múltiplo, como se, ao fazê-lo, a tarefa de dar
sentido lhe fosse poupada ou se visse minada por um tipo de consciência
que a enxergasse por fora, vendo a sua falsidade no momento em que
descobre que não tem outra coisa a que se agarrar?
Mas,
se admitimos que, ao contrário do que julgam as teorias da abertura
e da multiplicidade, o sentido é determinado e que nenhuma
teoria se pode constituir senão a partir de tal determinação
(seja ela qual for), então a crítica poderia responder à pergunta
acerca de suas exigências (ou tarefas) de duas maneiras. A primeira
seria: se não nos resta senão admitir que toda leitura é um salto
em direção ao sentido e se não nos resta senão reconhecer que
nada se forma fora do sentido, então a tarefa e a justificativa da
crítica estariam em acolher esse sentido, em ecoá-lo ou
expandi-lo, mas permanecendo nele enquanto exista o que ler. Não
seria uma tarefa especial, que se conceberia “por fora” da
literatura, mas uma tarefa da própria literatura, da qual seria
prova o fato de que as próprias obras são de algum modo manifestações
de crítica, seja esta explícita ou não, mas sempre inerente à
sua constituição e ao seu modo íntimo de ser, conforme
reivindicam os seus autores.
Por
outro lado, se essa resposta ameaça dissolver a crítica ou faz
supor que tudo seja crítica em literatura, então se poderia pensar
que a atitude da crítica – de uma outra crítica cujo estatuto não
se chega a conceber totalmente – não é tanto aquela que se
projeta para o futuro, num salto que garante o devir da
possibilidade aberta pelo sentido (esta seria, por exemplo, a tendência
em que se engajaria, a nosso ver, a crítica dita militante), mas em
retroceder sobre seus próprios passos e ganhar o seu futuro como
uma dimensão que incorpora o passado e o presente, abrindo-se enfim
ao gesto do pensamento como aproximação desarmada. A crítica,
nessa acepção, se manifestaria como conhecimento de alguma coisa
– e não tanto como teoria ou sistema dessa coisa –,
libertando-se dos fardos e das amarras que lhe têm imposto a tarefa
de analisar ou o esforço de interpretar (para não falarmos, no
caso da crítica militante, da tarefa de valorizar e de julgar, sem
ser ela mesma julgada no julgamento). Assim, poderia realizar-se
como concretude, isto é, como esforço que, partindo da concretude
do que se tem (e não tanto do que se postula) e caminhando na
segurança de seus próprios passos, chegaria ao futuro sem depender
das promessas – jamais realizadas – da teoria e da análise.
A
tendência hodierna a pensar que a literatura seja passível de uma
pluralidade de interpretações, ou que seja aberta ao arbítrio das
“leituras” num sentido que não leva em conta as suas exigências
centrais (e que a deixa à deriva no fluxo da história e no
suceder-se das mentalidades), marca, sem dúvida, um momento em que
a autoconsciência da crítica parece ter atingido um extremo. Ao
postular que entre a apreensão do sentido (evitemos fazer certas
distinções inoportunas) e o sentido apreendido vai a distância da
multiplicidade, a tendência aponta para o fato de que, no esforço
de fundar a crítica como uma atividade independente, autônoma e
capaz de ratificar os seus próprios termos de funcionamento, alguma
coisa se evadiu. Não falaremos das pretensões – tão comuns nos
anos 40 e 50 do século passado – a fundar a crítica como uma
atividade a ser exercida no território da ciência ou de lhe
conceder estatutos que, derivados do que se julga ser a ciência,
lhe dariam a consistência e a capacidade de verdade que tanto se
desejou alcançar. Essa noção corresponde, não há dúvidas, às
aspirações de um século em que a ciência alcançou prestígio
considerável, mas é de supor também que, fora do campo de sua
eficácia, esse prestígio não deve ser confundido com a última
palavra da verdade.
Postular
a possibilidade do sentido único não quer dizer postular a idéia
de um sentido definitivo, estável e acabado de uma vez por todas. A
experiência do leitor provavelmente o proibiria. Há, na teoria da
linguagem, um preceito que manda distinguir entre sentido e
significado, o qual, se não pode ser de todo provado, poderia pelo
menos ser invocado neste ponto. A opção pelo sentido único diz
respeito, assim, ao fato de que a relação do leitor com a obra
passa pelo sentido e de que esse sentido não se confunde exatamente
com a decifração do significado ou com a perspectiva de se ter, no
âmbito da leitura, uma boa ou má compreensão do que a obra
oferece. Antes, é possível pensar que a possibilidade de um
sentido evanescente faz parte do modo de se oferecer à interpretação
da obra literária, dizendo respeito à capacidade ou disposição
de cada indivíduo para experimentá-lo, segundo circunstâncias que
só a ele dizem respeito. Tendo a ver apenas com esse momento de
abertura da obra para a interpretação, para a compreensão e para
a experiência, o sentido se revela como sendo isto que a obra me
endereça, tornando-se sentido para mim, qualquer que
seja a minha relação com o significado ou com a clareza (ou
obscuridade) da interpretação que me caiba. E, por ser
sentido para mim, não há como delegar a outro a
responsabilidade que me compete diante dele, bem como não há como
usurpar do outro essa responsabilidade, conforme a teoria moderna e
certas histórias da literatura tentam fazer.
O
estatuto da crítica poderia ser buscado, caso queiramos insistir na
questão, naquele território que lhe pertence por direito e que a
crítica só começa a percorrer quando, ao se perguntar pelo seu
estatuto, começa a existir (numa acepção que escapa às reduções
historicistas) como consciência de si mesma e de sua própria
verdade interior. Essa consciência jamais poderia advir-lhe da
postulação de um objeto impossível, difuso, aberto ao fluxo da
história, mas do fato de estar voltada para esse objeto e
– num sentido mais profundo – de ser ela mesma esse objeto, no
movimento da acolhida e da experimentação, que são intransferíveis
e vitais.
As
duas respostas ora aventadas não têm, evidentemente, o objetivo de
resolver um problema ou de dar à crítica um novo tema ou uma nova
formulação. Ao contrário: se é verdadeiro aquilo que enunciam,
ou se existe qualquer possibilidade de que o venha a ser algum dia,
estaria em consonância com elas o não as tomar como definitivas ou
não reduzi-las a fórmulas, que sempre se encontram nas bases das
escolas de crítica. Tal atitude poderia incorporar, pelo menos, o
espírito da segunda resposta – aquela que diz que a crítica não
se faz com o apoio das fórmulas ou com a aflição incessante de
resolver problemas, de sintetizar conceitos e de criar métodos, mas
do ato mesmo de criticar.
Se
o reduzir-se a fórmulas, se a pretensão do sistema, no que diz
respeito à literatura, não podem ser entendidos, conforme
dissemos, senão como pertencendo à ordem da ficção e da poesia
(com a qual a crítica sistemática não quer se confundir), então
o estatuto da crítica estaria na própria literatura – tomada tal
palavra num sentido que não carece de conceituação nem de prova.
É a partir daí, acreditamos, e somente a partir daí, que
poderemos pensá-la como atividade possível, justa e razoável
do espírito, em sua vocação para a liberdade e para a verdade.
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