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ARTE
E
MENDICÂNCIA
(Renato Suttana)
Um dos truques de mágica mais impressionantes
que existem é, sem dúvida, aquele em que um homem,
soprando uma flauta, faz elevar-se diante de si uma
corda que, como uma serpente estranha, se coloca
inteiramente ereta, com a cabeça voltada para as
nuvens. Para completar a maravilha, um menino magro é
convidado a subir na corda, o que ele faz com
admirável destreza, mostrando que há mais coisas no
mundo do que a sagacidade do observador é capaz de
adivinhar. Porém mais interessante, ainda, do que tudo
isso é o fato de que esse truque seja realizado em
público por indivíduos miseráveis, com aspecto de
ascetas, que ali comparecem como se a vida não lhes
tivesse reservado outro quinhão senão o de praticar
esses prodígios em troca de algumas moedas – dadas por
quem se sinta ocasionalmente compelido pela mágica até
o ponto de meter a mão no bolso para se desfazer de
alguns trocados.
Tudo isso dá o que pensar. O público
certamente se verá na contingência de ter de depositar
uma moeda ou uma cédula no cesto que se acha ao lado
da corda – moeda e cédula de valor equivalente ao
encantamento que o truque terá produzido em sua mente.
Alguns no entanto apenas pararão por um momento para
admirar o evento, e depois seguirão em frente. Outros
talvez nem se deem ao trabalho de parar: há mais
coisas para fazer na vida do que admirar prodígios,
principalmente esses que são executados por estranhos
em praça pública. E há quem diga que é mais fácil
fazer a corda dançar ou se enrijecer como um poste,
até que alguém possa trepar por ela como pelo tronco
de uma palmeira, do que arrancar moedas de certas
bolsas. Esta, sim, seria a maior de todas as façanhas;
porém há que convir que nem tudo é factível na vida, e
alguns truques estão além do alcance mesmo dos mais
expertos.
A ideia de que certas mágicas possam ser
realizadas não surpreende tanto quanto o fato de que o
sejam a preços tão modestos. É como se a maravilha do
mundo pudesse ser comprada numa liquidação, não sendo
necessário despender recursos exorbitantes para ter
acesso ao espanto que aí se produz. Mas, do outro lado
do abismo, alguém deve estar segurando uma corda, e o
equilibrista, por mais ágil e ousado, sempre precisará
jantar à noite, a fim de ter forças para repetir a
façanha no dia seguinte. Pagaremos para vê-lo
novamente? Para muitos, a decisão de arriscar-se sobre
um precipício é de foro estritamente pessoal, e
ninguém tem nada que ver com isso. E, se além disso um
sujeito for capaz de fazer com que uma corda se
comporte como uma cobra ou de atravessar,
equilibrando-se sobre ela, a distância que separa as
torres de dois edifícios, bem, só podemos nos
congratular com ele, muito embora pensemos no fundo
que ele faria melhor se gastasse o seu tempo com
coisas mais úteis.
Pensar que alguém possa viver da boa vontade
alheia com o espanto nos põe de frente para um
mistério tão profundo quanto os segredos da própria
magia. Sabem-no bem os artistas e também os poetas,
que
há muito desistiram de tentar viver por esse meio.
Provavelmente não deixaram de sonhar com a
possibilidade de voltar a fazê-lo (se é que já o
fizeram alguma vez), mas a cada dia se veem mais e
mais confrontados com a evidência – algo
desconfortável – de que a sua arte se tornou uma
arte de mendigos. Não porque tenha se tornado uma
arte mendiga ela mesma, mas há tempos que os
artistas não fazem outra coisa além de tentar
convencer o público de que vale a pena perder um
minuto de seu precioso tempo contemplando as
maravilhas que são capazes de executar – maravilhas
que, numa época como a nossa, tão ávida e ao mesmo
tempo tão pouco suscetível de espanto (com o perdão do
paradoxo), enfrentam a concorrência acirrada das
distrações ocasionais. Quem é que nunca pensou duas
vezes antes de comprar numa livraria ou numa feira um
livro de poesias, sabendo que aquele dinheiro poderia
ser gasto, por exemplo, com um bom jantar ou duas
cervejas?
A chamada era moderna propiciou o advento dos
artistas milionários, aqueles que, fazendo de sua arte
um excelente negócio, aprenderam a tirar dela algo
mais do que um sustento. São raros evidentemente e, se
não constituem exceção, é porque de algum modo
conseguiram se estabelecer no mercado. Ao mesmo tempo,
a regra continua sendo a de todas as épocas, ou seja,
a dos artistas que, apertados entre as necessidades da
sobrevivência e o desejo de fazer arte, têm de
encontrar aí o seu caminho, tornando-se um tanto
parecidos com aqueles mágicos que, quanto mais
prodigioso o seu truque, menos pessoas encontrarão
dispostas a pagar para vê-lo, tal como se houvesse
também uma regra que obrigasse a relacionar as duas
coisas – arte e pobreza –, relacionando por seu turno
miséria e destreza, habilidade técnica e mendicância,
audácia criativa e farrapos. Há muita riqueza no
mundo, dirão, mas ela não chega ao bolso dos poetas.
Para estes, reservam-se os rigores da carestia,
convencidos todos, talvez, de que isso aprimora a sua
arte, mas ainda é preciso comprovar tal relação.
Fato é que o artista de hoje, perdida a
capacidade de fazer dinheiro vendendo arte, não sabe
mais de onde tirará o sustento de amanhã. Quanto aos
poetas, acostumamo-nos demais a achar que são
indivíduos que vivem na extremidade do mundo, e não
custa acreditar que o fazem desde já, pouco importando
que se trate apenas de mais um engano da imaginação.
Não foram eles que nos ensinaram a pensar assim?
Talvez não, mas não há como negar que sua linguagem
difícil, figurada e excêntrica, e as cifras em que
parece apoiada nada têm a ver com cifras monetárias, e
que eles são de fato seres que vivem de brisa. Seria
este o caso? No entanto pode ser que, em outro mundo –
naquele mundo onde eles não vivem
e que por isso nada tem a ver com a poesia –, eles
tenham contas a pagar, filhos para sustentar, e pode ser que, como
todos os seres humanos, passem pelos mesmos apertos
por que passamos diariamente, não excluídas a
doença, a fome e a necessidade de ter um teto.
Faz parte
da sabedoria contemporânea aconselhar os jovens que
se sentem inclinados para a arte e a poesia a que
mudem de ideia e procurem outras atividades para
ocuparem o seu tempo. Os
pais o dizem aos seus filhos, e as esposas o
aconselham aos seus maridos. Quando intuímos que um
jovem tem inclinação para escrever poemas, sentimos
imediatamente uma urgência, semelhante à aflição que se tem diante de um abismo: ou o incentivaremos a
saltar, ou tentaremos agarrá-lo para que não se
atire no vazio. O
primeiro impulso que nos ocorre é, portanto,
de
dissuadi-lo, mesmo
levando
em conta que
isso nos privaria da poesia. Ora, mas há muita
poesia no mundo –
pensamos –, e poesia
até demais. Então
não dói nada acreditar que um verso a menos, um
poeta a menos, um
talento a menos –
aquele que
conseguimos salvar do
desastre –
não prejudicará o mundo e não influirá no cômputo
geral, e
que depois disso a vida prosseguirá e continuará a
ser como sempre foi.
12-12-2014
(Leia
também Adendos
e Espinhos - livro de
crônicas de Renato Suttana)
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