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ARTE E LEGITIMAÇÃO (a
propósito de uma exposição de Yoko Ono)
(Renato Suttana)
Uma das instalações de Yoko Ono
expostas no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos
Aires se constituía de uma escada metálica em espiral,
dessas que usamos em prédios e que, devido ao seu
formato cilíndrico, servem para poupar espaço em
ambientes onde isto é necessário. No teto, sobre o topo
da escada, que quase o alcançava, havia uma abertura em
forma de claraboia, por onde uma luz penetrava, talvez
proveniente do exterior. O sentido ou a “mensagem”
contida nessa instalação deveria ser, provavelmente:
“Suba por esta escada até chegar à luz.” Ou: “Suba por
sua própria vida até alcançar a iluminação.” Eu jamais
teria subido por aquela escada, a não ser para olhar os
arredores; mas não havia arredores para ver ali, exceto
as paredes e as janelas do próprio edifício onde
funciona o museu, de modo que quem de fato se dispunha a
subir parava no topo da escada por um momento, para
fazer uma foto, e nisto se resumia — creio — toda a
experiência estética daquela situação.
Subir pela escada — pareceu-me — tinha um sentido
semelhante ao de quedar extasiado diante do pequeno
“Moinho”, de Van Gogh, ou do “Retrato do Pai”, de Henri
Rousseau, expostos em salas do Museu Nacional de Belas
Artes, que se localiza naqueles arredores. A segunda
obra é uma tela diminuta (com proporções pouco maiores
que as de um envelope comum de carta), exibindo em seu
centro a cabeça de um homem rodeada por manchas de tinta
que lembram (ou representam) nuvens. De certo modo, se
tais obras não estivessem expostas num museu e se não
soubéssemos a identidade de quem as tinha pintado, não
acho provável que alguém — que não tivesse uma certa
cultura artística ou que nunca tivesse ouvido falar de
seus autores — se desse ao trabalho de parar para
admirá-las ou, saindo do movimento das ruas, de entrar
num museu ou numa galeria só para observá-las. Não quero
dizer que as instalações de Yoko Ono tenham o mesmo
valor ou o mesmo significado (qualquer que seja) dessas
pinturas de mestres consagrados ou que devam ser
comparadas a elas. No entanto acredito, no que diz
respeito às pinturas, que elas comprovam bem um aspecto
da arte moderna, o qual está no fato de que, em grande
medida, essa arte — chamada moderna — abdicou
de certas qualidades e valores que legitimavam e
justificavam o ato de fazer arte no passado, recorrendo
agora a outros elementos de significação e se firmando
sobre eles. Entre as qualidades e valores abandonados
estariam, por exemplo, a preocupação com as proporções
da imagem ou com a maestria da execução (conforme se vê
nos quadros e esculturas neoclássicos expostos numa das
seções do
mencionado Museu de Belas Artes) — elementos que, a seu
tempo (e ainda hoje, suponho), justificavam para o
público (erudito ou leigo) ao menos o preço do ingresso.
O pequeno quadro de Van Gogh, de execução aparentemente
rápida, com pinceladas soltas e em tons acinzentados,
sobre uma tela retangular, faria o homem comum pensar
que se tratava de uma arte diletante — exatamente porque
lhe falta, a essa arte, aqueles sinais caracterizadores
que, noutras circunstâncias, teriam sido emblemas do
sublime. Pensemos, quanto a isto, que a arte moderna,
arriscando-se no território da insignificância e
buscando legitimidade em outros setores que não o da
exibição, por parte de seus autores, de maestria e
domínio das técnicas disponíveis, se tornou uma arte de
incertezas e perguntas. E, ironicamente, em seu desprezo
pelas instituições (academias e museus), se tornou
sobretudo uma arte dependente dos museus — e dependente,
eu me arriscaria a dizer, num grau maior do que a
própria arte acadêmica (que incorpora, aos olhos do
público, valores e sinais distintivos de nobreza que
podem ser percebidos sem grande esforço de análise,
entendimento ou erudição).
Tal aspecto — a necessidade do museu e da crítica para
realçar ou sublinhar um valor — atingiu o seu ponto mais
agudo ou de saturação na arte dita “conceitual” dos
nossos dias. Como dizer que a escada de Yoko Ono era
parte de uma obra de arte ou de um evento artístico
senão porque se encontrava exposta num museu — lugar
onde, quase sempre, entramos, para admirar a arte,
imbuídos de um sentimento de participação e fervor que
aquelas pequenas ordens tolas e aqueles comandos
aparentemente ingênuos que se estampavam em suas
instalações pareciam explorar com sagacidade? Talvez por
isso eu não tenha aderido ao “espírito” e não tenha
querido participar (ou me tornar participante) de
nenhuma das instalações. Bastava-me a contemplação, que
já me dizia tudo e, principalmente, já me dizia muito
acerca de estar ali, naquele ambiente especial e
“especializado” — templo de celebrações artísticas cujo
sentido começava e terminava nelas mesmas e cujo alcance
eu não saberia dizer se ia além daquelas paredes e
vidraças (muito amplas por sinal) —, para ver as
instalações e as outras obras em exposição.
30-8-2016
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