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A
QUEDA
(Renato Suttana)
Um ponto qualquer, que me servisse de
apoio para dar o salto. Um ponto qualquer a partir do qual, estando
perdido, ainda assim eu pudesse prosseguir: que não me oferecesse
orientação, mas que estivesse sempre lá – infalível –, um ponto
qualquer, tão insignificante quanto qualquer outro; mas em presença
do qual eu me sentisse mais forte, mais corajoso e mais capaz de dar
o salto. E em direção a que se haveria de dar o salto? Estou parado
num lugar. Não há um ponto sobre o qual me apoiar, e quando penso em
dar o salto não posso deixar de pensar que há esse ponto. E então,
quando penso em dar o salto, penso também que não há esse ponto, e
sou obrigado a recuar ou a dar um salto qualquer no vazio,
desajeitado e cego, que pode me levar a algum tipo de solo contra o
qual eu me despedaçaria, mas que pode me trazer de volta ao mesmo
lugar – um ponto, ao menos, que me desse a garantia de que avancei.
Recuo, no entanto, cega e
desastradamente, e vou de encontro a uma espessura de ar que não tem
limites nem consistência. Atravesso essa espessura e caio de novo no
atordoamento, neste vazio claro que se converteu em atordoamento e
de onde, ao que parece, não é possível sair. Caio neste vazio como
quem cai em si mesmo, sem no entanto atingir nenhum fundo – e
estar caindo é a minha condição. O movimento de cair (que é
semelhante a permanecer no mesmo lugar) liga-se à minha condição; e,
quando caio, é nesse movimento que caio. Caio no movimento, só
porque existe o movimento de cair, e o cair nele – através dele – é
que me dá a consciência de cair. Se houvesse um ponto, eu poderia
dizer: caio, mas o movimento de cair e o cair no movimento não são,
de fato, a mesma coisa. Separam-se pela própria idéia de que existe
fora deles uma exterioridade que os separa; mas, não havendo essa
exterioridade, o movimento de cair é o próprio cair no movimento,
sem que nada mais se altere senão isso. Não havendo exterioridade,
cair, sem cair em direção a nada, é cair no próprio movimento, como
um absoluto que se lançasse através da escuridão de um vácuo sem
fronteiras. Cair é cair assim, mas cair assim eu não sei o que é; e,
se houvesse um ponto qualquer que me dissesse: isto é assim, então
eu poderia, caindo, cair por fora do movimento.
Cair, caindo por fora, seria cair como
quem dorme. Cair, caindo por fora, seria cair como quem se esquece
de um compromisso, como quem negligencia uma tarefa e se lança na
vertigem da despreocupação. Mas, não havendo um ponto, uma linha, um
farol ao longe para me guiar, tudo o que posso fazer é cair para
dentro da própria queda – cair na queda, enquanto o cair, em mim, é
que me lança em direção à queda, para dentro da queda, como um
pássaro cego, sem a perspectiva, sequer, de me arrebentar contra o
chão. Caio lentamente, ou caio na ilusão de que caio – e o movimento
é tudo o que sei, tudo o que tenho e de que sou capaz, porque é
também aquilo que me torna incapaz do que quer que seja.
Experimento-me nesta vertigem, neste lançar-me que não me põe em
movimento, e todo o movimento de que sou capaz é este movimento em
direção a mim mesmo: cair para dentro da queda como uma pedra, um
cometa caindo na vastidão do vácuo, enquanto tudo o mais
permanece inalterado. Mas até um cometa precisaria cair para fora do
próprio cair. E cair para fora do próprio cair seria repousar, seria
cair para dentro do sono, para fora da insônia e da madrugada cheia
de horas – seria cair em direção ao repouso. E, no entanto, cairia
apenas para dentro da queda: pedra dentro da pedra, que desmoronasse
sobre si mesma, desmoronamento introvertido que, caindo para dentro
de si mesmo, caísse indefinidamente em direção a nada ou a um
eterno ponto de partida.
Um eterno ponto de partida de onde não
me afasto faz com que a idéia de cair, caindo por dentro do
movimento, seja semelhante a estar parado no mesmo lugar. E estar
parado no mesmo lugar é cair indefinidamente no próprio movimento de
cair: cair, por dentro do movimento; e aquilo em que caio sou eu
mesmo, parado num ponto qualquer da inércia – o único ponto que
posso identificar, mas esse ponto é apenas o efeito de estar parado
e caindo no movimento de cair. Que digo? Esse ponto não me orienta,
não me oferece um subterfúgio. Esse ponto é apenas o efeito, e por
fora dele não há nada: se houvesse um ponto qualquer por fora dele
que eu pudesse identificar como sendo um ponto exterior a ele, esse
ponto faria da queda um movimento para fora da queda. Seria como
cair em direção ao término, a uma meta de chegada – havendo tal
ponto exterior –, e cair seria como cair por fora do movimento. Mas,
sendo tudo interior (ao próprio movimento de cair), então o que cai
em mim cai em direção a si mesmo, e cai sobre o movimento de cair,
gerando uma espécie de ponto imóvel que é semelhante a estar parado.
Estou parado na insônia, a uma distância infinita do sono, e tal
estar parado é como estar caindo no movimento puro e jamais
transcendido de cair.
Que a noite se transforme em madrugada e
que a madrugada se transforme em dia não altera o estado de coisas.
Que eu esteja à espera de alguma coisa e que aquilo que espero não
possa definir-se como sendo o objeto de nenhuma espera me dá a
consciência desse enclave. Espero, mas espero por fora da espera, ou
espero por dentro da espera – aprisionado na espera, sem que haja um
objeto para tal espera ou que valha a pena esperar. E esperar assim
é estar desperto no enclave: caindo, imóvel, através da noite e da
madrugada, enquanto as horas vão aos poucos se desdobrando e
revelando o trabalho incessante da luz. Espero por fora da espera,
como um insone à espera do sono, por fora do sono, mas já meio
adormecido, porque a própria idéia de esperar o sono contém, ela
mesma, uma gota de adormecimento – de um adormecimento insone que
impede qualquer possibilidade de sono. Que digo? Espero por dentro
da espera, na esperança mais íntima da espera, porque esperar assim
é como não esperar, porque o que se espera está completo em si mesmo
e tem consistência de espera e se desdobra sobre si mesmo como as
horas se desdobram no tempo, mas sem produzirem o tempo, assim como
esperar não produz a espera: é a própria espera, a se desdobrar
sobre si mesma, no movimento introvertido de cair. Cai a espera em
si mesma – caio em mim mesmo enquanto espero, e assim é que a espera
se produz, e não de outro modo. Mas eu nada sei sobre isso: na
insônia, se espero a chegada do sono, é porque caio na própria
queda, e o que vem depois não me concerne.
Se eu caísse no sono, já não haveria a
insônia nem a queda: eu cairia, simplesmente, para fora da queda
convertida em outra coisa, ou já não haveria mais cair, porém sobre
isso nada sei. Enquanto caio – parado num ponto qualquer –, sei
apenas que caio, e que caio no movimento de cair. E o ponto qualquer
onde estou parado não diz respeito ao cair, mas a estar parado
enquanto caio, caindo no movimento de cair. Caio, caindo na
imobilidade desse cair, que cai sobre si mesmo sem modificar o
estado de coisas. E a imobilidade, convertida em movimento, prolonga
o movimento de cair: sobre a própria vertigem, sobre o próprio
movimento que me conduz à vertigem, sobre a idéia do movimento em
que a vertigem se incorpora. Como um pássaro que precisasse de suas
asas não para o vôo, mas para permanecer imóvel no chão, e é desse
modo que eu me sinto avançar, mergulhando num movimento imóvel que,
lançando-me para diante, me lança de fato no fundo de um movimento
que se consome em si mesmo. As horas passam lentamente, mas estou
caindo no movimento. Caio lentamente no movimento, e no entanto caio
vertiginosamente, como quem caísse de uma grande altura, caindo no
entanto na própria vertigem de cair.
Um ponto qualquer que me fornecesse
apoio para o salto. Um ponto que não fosse o salto, que fosse
exterior ao salto e a partir do qual o salto se tornasse possível,
não fosse só uma possibilidade abstrata, não fosse só uma suposição
em que me demoro como num devaneio. Um ponto que produzisse a
certeza da queda por fora da queda, de um vasto cair que me levasse
para o fundo. Um ponto a partir do qual, estando perdido, eu ainda
assim pudesse prosseguir.
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