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A
QUEDA QUE AS UNIVERSIDADES TÊM PELOS POETAS MORTOS
(Renato
Suttana)
Quem
desejasse obter algum conhecimento sobre a poesia brasileira atual e
consultasse uma dessas revistas que as universidades publicam – e
nos referimos em especial às grandes universidades – chegaria a
uma conclusão bastante exata: a poesia brasileira atual
simplesmente não existe. Essa não seria, evidentemente, uma
constatação alarmante para quem não se preocupa com o assunto, desde que certas questões de
suposto interesse coletivo (se é
que se trata de tal) parecem exercer apelo sobre uma parte muito
pequena da população, mas para esse leitor pode ser que a coisa
gerasse alguma dúvida. A julgar pelo que as universidades publicam
efetivamente acerca da poesia contemporânea do Brasil (na
eventualidade,
é claro, de que ela exista), poderia concluir que se
enganou a respeito do tema e que a expressão não nomeia nada de
preciso, a não ser que se pensasse que a poesia contemporânea seja
escrita por gente como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e
Jorge de Lima – o que poucos estariam dispostos a admitir.
Em
se tratando de poetas vivos, então, as coisas se afiguram
ainda mais desanimadoras. Além de não existirem no sentido
mais específico do termo, também não deixam um rastro que,
futuramente, venha provar que a impressão de que não existiam se
deveu a um equivoco ou a um desvio de perspectiva (ou, quando menos,
a uma certa pressa em avaliar a situação). Flutuam por aí, como
balões de gás, e, como tais, não podem ser capturados nem
domesticados por ninguém – muito menos pelas grandes
universidades, que têm coisas mais importantes a fazer do que
penhorar o seu tempo e o seu prestígio na perseguição de
fantasmas. E, se alguém dissesse que o interesse pela poesia (que,
por incrível que pareça, nos dias de hoje ainda persiste – mesmo
enfraquecido – nas universidades) só conserva a sua atualidade e
o seu frescor em decorrência da improvável lenda de que existem
poetas vivos e qualquer coisa como uma poesia contemporânea, pode
ser que fôssemos obrigados a retrucar que tal idéia não passa de
um equívoco. Argumentaríamos que a poesia que interessa às
universidades nada tem a ver com estar vivo ou morto (quem a
pratica) e que o interesse por ela advém de uma invenção de caráter
arqueológico. Conclui-se, absolutamente, que há uma poesia a
estudar ou a venerar, não se tratando necessariamente de uma arte
praticada por vivos – o que, aliás, se colocado em questão,
só geraria constrangimentos nesses veneráveis santuários do
saber. Poetas vivos costumam não só ser pessoas desinteressantes e
inconvenientes (em mais de um sentido), como também nos transmitem
não raro uma sensação de insegurança mesclada ao desconforto. É
como se, em presença deles, não tivéssemos garantia nenhuma de
que no próximo minuto continuarão a ser os gênios pelos quais os
tomamos, para não falar das criaturas vivas e capazes de escrever
poesia que deveriam ser e que todos esperam que sejam.
Justifica-se,
pois, que as universidades tenham um fraco pelos mortos. Além
disso, há o fato de que, em sua atenção aos mortos, em seu
respeito quase religioso por eles, parece repugnar
aos meios acadêmicos a idéia de que os autores de livros possam estar
por perto, sujeitos a qualquer momento a entrarem por aquela porta e a
pedirem que compremos os seus livros ou que, pior, os patrocinemos. Isto, sim, seria uma afronta e quem sabe até um
desrespeito – não só à memória dos mortos venerados mas também
à seriedade e à sisudez que devem imperar nesses ambientes
circunspectos. No mais, os poetas comprovadamente vivos trazem o
inconveniente de que suas obras, quaisquer que sejam elas, estão
sujeitas a flutuações de valor (pois o valor sempre estará em
questão) que dependerão demais do que se diga da próxima
obra-prima (ou do próximo desastre) que sejam capazes de perpetrar.
Pouco importa que sejam convidados a comparecer nas universidades e
a se expor diante de platéias curiosas, que os olham com a
estranheza com que olhariam um texugo ou um rinoceronte. Expostos
sobre tablados, eles parecem frágeis demais, ou enfadonhos demais,
ou engraçados demais, ou simplesmente humanos demais para que
possamos conceber qualquer possibilidade de ligar suas figuras às
obras ou às obras de que os imaginamos inventores. Caso conheçamos
uma ou duas dessas obras, pode até ser que nos permitamos alguma
condescendência, muito porque não se pode querer perfeição em
tempo integral. Mas, se não lhes conhecemos obra nenhuma, então a
catástrofe será inevitável: não poderemos fazer delas (dessas
obras hipotéticas), por antecipação, senão a pior idéia
possível – a qual nos levará à conclusão de que jamais
compraremos qualquer livro que tenha saído da pena desses autores. (Eis um alerta
a ser dado a todo poeta vivo: que ele leve sempre em conta o quanto a sua
imagem pública pode influir sobre a vendagem de seus livros.)
Essas
observações, provavelmente, explicam em parte a aversão que as
universidades (e aversão que será tanto maior quanto maior e mais
renomada for a universidade em questão) nutrem pelos poetas vivos.
Mas há outros motivos, como, por exemplo, o pensamento de que as
universidades quase sempre organizam seus projetos da mesma maneira
como produtores de cinema organizam os deles: pensando no público
alvo e, conseqüentemente, no retorno dos investimentos. Não há lógica,
portanto, se olharmos por esse ângulo, em investir dinheiro – o
que envolve verbas públicas, agências de fomento (estas, mais que
todos,
terrivelmente alérgicas a poetas vivos!), bolsas de estudo, salários
de professores, grupos de pesquisa – para estudar coisas como as
obras de desconhecidos que, provavelmente, não teriam custado, para
virem ao mundo, uma centésima parte de todo o dinheiro que se
gastará para estudá-las. E o que dizer da imagem desses poetas
quando exposta publicamente ou para uma platéia que, quando muito, se
dignará a conceder-lhes um bocejo logo que pronunciarem a
primeira palavra? Como atores desconhecidos, figuras tais não
atraem, acreditamos, um mínimo sequer do interesse algo espetacular
que se espera dos escritores (do qual só alguns sabem dar mostras!) –
façanhudos praticantes de uma atividade que, nos meios estudantis,
teria muito mais prestígio do que o de que goza atualmente, não fosse o
inconveniente de por lá aparecerem os poetas com os seus livros.
Um
leitor mais ingênuo poderia perguntar se, neste particular, não
seria mais proveitoso, em vez de investir recursos em congressos e
pesquisas, bem como em tudo o mais que envolve o estudo das obras dos
escritores, simplesmente investir algum trocado na publicação das
mesmas. Perguntando-o, no entanto, apenas demonstraria, de sua
parte, um imenso despreparo para lidar com as realidades práticas da
vida. Que a obra de Rimbaud não lhe tenha
rendido, talvez – em termos financeiros –, quando vivo, um milésimo de tudo
o que já se gastou para estudá-la ou para exaltá-la em todos os
meios de comunicação (e não só nas publicações acadêmicas)
apenas comprova que Rimbaud (tal como outros que hoje desfrutam de
equivalente prestígio no mundo das letras) viveu na época errada
– que é a época em que todos os poetas vivem. Por outros termos,
o que aconteceu a Rimbaud comprova que teria feito melhor se apenas
tivesse sido um fantasma de si mesmo, enquanto sua obra vinha a público
pela primeira vez, não podendo nascer, infelizmente, como obra póstuma de antemão (desde que ele estava vivo quando a escreveu) –
mas isso constituiria uma impossibilidade em que sequer vale a pena
cogitarmos.
Há
dificuldade, por certo, em estabelecer que tipo de relações existe entre os poetas vivos e os poetas mortos, e pode ser que
não devêssemos mencionar esse assunto. No entanto não se pode
negar que, por mais que o interesse se concentre nos mortos, se
constata, quanto a estes, uma espécie de dependência frente aos
vivos – dependência da qual só tomamos consciência quando
reconhecemos que, de algum modo, é dos vivos que os mortos se
alimentam (embora, para as universidades, os mortos tenham precedência
sobre os vivos). Não se trata de ajudar os mortos, que não podem
mais se defender, nem de cultivar a memória deles num mundo que a
cada dia tende a se esquecer mais rapidamente das coisas do passado.
A dependência dos mortos em relação aos vivos provém de uma espécie
de mito popular, de uma crença a respeito da poesia que nenhum
erudito jamais alcançará desmascarar. Essa crença diz que a poesia,
estando viva, ainda é praticada por alguém, e que o fato de
nos interessarmos por ela depende da idéia de que, nos dias de
hoje, ainda exista gente capaz de praticá-la. Ou é só um equívoco
de nossa parte? É preciso ser cauteloso neste ponto. Pensemos,
apenas, que nada é tão interessante a ponto de que se deva passar
uma eternidade a lucubrar a seu respeito – podendo muito bem ser
este o caso da poesia (e talvez as universidades tenham
chegado cedo a essa conclusão). Mas, se supusermos o contrário, então
teríamos de concluir que uma imensa injustiça está a ser
praticada contra os poetas vivos, dos quais dependem, para existir,
muito mais coisas do que estamos acostumados a crer, e aos quais portanto deveria ser paga alguma retribuição.
O
certo é que as universidades têm os seus motivos para preferirem
os mortos, assim como certos críticos têm os deles para preferirem
alguns autores em detrimento de outros, bem como o público os dele para preferir certos escritores pelos quais as
universidades não se interessam. Mas pensemos, ao menos, que um dia
alguma coisa poderia ser feita para evitar o embaraço que causa,
digamos, o fato de que um poeta se dirija a uma universidade e peça
dinheiro para publicar um livro, e que em resposta lhe seja
proposto, em vez de escrever o próprio livro, fazer um estudo sobre
outro poeta, menos interessante do que ele talvez, mas que não seja
ele o poeta a ser estudado (ou que não chegue ao desplante de pedir
financiamento para estudar a sua própria obra, o que já seria
demais!). Com um pouco de diálogo, chegaríamos a um acordo, e pode
ser que os poetas vivos encontrassem nem que fosse um cantinho para
se aninharem no interior das grandes universidades, e que essas não
os enxotassem de lá, mas os deixassem ficar.
Seria
um mundo em que o nosso leitor curioso e perguntador se sentiria
mais confortado, concluindo, em sua indefectível ingenuidade, que
ainda existe alguma lógica no processo da realidade.
(In Adendos e
Espinhos - livro eletrônico)
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