O
SOPRO DO AXÈ
(Antonio
Godi*)
O
Afoxé é a referência das comemorações carnavalescas da primeira
capital brasileira em 2009. Até porque comemoramos 60 anos do
tapete branco da paz resistindo desde a passagem da segunda guerra
até hoje (1949-2009). Trata-se de conquistas múltiplas marcadas
por querelas culturais, sociais e festivas tantas que caracterizam a
complexidade de nossa história. É a antevisão de uma conquista
humana em busca de uma diversidade plena. É como o anúncio de vitória
de uma “afro-baianidade” misteriosa e mítica que guarda sua
glorificação numa mescla inusitada de cultura, estética e
religiosidade. O “afoxé” de matriz étnica nagô guarda na sua
significação o mistério de nossas origens e mesclas. Enfim,
revela miticamente a realização dos contatos humanos através da
palavra e da vida festejada e concretizada. Ou seja a etimologia
desse vocábulo aponta para a soma de duas expressões da língua
nagô: fó (palavra,
sopro) e axé (poder de
realização).
O
termo “afoxé” abriga uma reflexão de ordem filosófica e
epistemológica profunda. Ou seja, a “palavra” enquanto
“sopro” emissor da comunicação realizando o partilhamento
cultural da vida humana. Sem respirar o homem não existe e ao
expirar o ar da vida emite sons socializando e conspirando
possibilidades do existir através de recepções múltiplas. Ao
“soprar” na direção dos outros os homens viabilizam o caminho
da emissão e do significado concretizando a existência em
linguagem e comunicação. Exú que o diga.
Paradoxalmente,
o termo “Afoxé” passaria a representar, historicamente,
significados tantos para além de sua rica etimologia. Afoxé hoje
é sinônimo do ritmo do ijexá, do instrumento musical xequeré e,
principalmente das agremiações afro-carnavalescas homenageadas
enquanto tema do Carnaval de 2009. Importante informar que a formatação
dessas agremiações afro-carnavalescas constituídas entre os séculos
XIX e XX, jamais existiriam sem a presença matricial dos desfiles
dos Reinados de Congo no Brasil escravista da Colônia e do Império.
Nessa passagem os africanos, aparentemente iguais, dão prova da
complexa diversidade humana.
Sem
dúvidas a presença afro-carnavalesca no carnaval moderno baiano
tem no pioneirismo dos Clubes Embaixada Africana (1895) e, Pândegos
da África (1896) uma referência de história e continuidade. Tudo
então começou e se proliferou. Desdobrou-se em batucadas, afoxés,
escolas de sambas, blocos de índios e blocos afros. Multiplicou-se
em presenças, comportamentos, estéticas e sonoridades mudando as
cenas baianas e contemporâneas. O “País dos Carnavais” não
conhece o Carnaval e nem mesmo os “Afoxés”. Não escutou os
sopros tantos que possibilitaram acontecimentos inusitados e
carnavalizados. Não leu nem viu a emergente antropologia baiana de
Nina a Carneiro. Passou ao largo das atuais viagens históricas e
antropológicas de Antonio Risério, Raphael Filho, Ericivaldo
Veiga, Wlamira Albuquerque. E nós tantos que insistimos em pensar
sobre o poder e sonoridade da palavra estética e socializante no
existir.
A
Bahia ouviu de longe o canto dos Blocos afros sem levar em conta de
onde vinha e onde estava o veio primacial do sopro rítmico dos
“Afoxés”. A Bahia desconhece e subestima seus poetas e
pensadores. A Bahia não conhece o ator, cineasta e poeta Miguel
Carneiro. Reconhecido e premiado internacionalmente com um poema
histórico denominado “A Lenda dos Afoxés”. A Bahia não
conhece a Bahia. Mesmo quando pensa homenagear um de seus ícones
culturais. “Triste Bahia...”!
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Ator e diretor artístico. Professor do DCHF/NUC/UEFS.
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