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Nicolau Saião, sem título (arte digital)

 

A FELICIDADE PELO MÉTODO

 

(Renato Suttana)

 

Tentar levar alguém a encontrar a própria felicidade é uma das tarefas mais difíceis que podemos empreender. Por isso, quem se dedica a ela quer receber, antes de tudo, uma boa remuneração. E não estamos falando apenas de psicanalistas e de outros profissionais do bem-estar público (quem já teve de recorrer a um saberá do que se trata), que não se disporão a ajudar ninguém sem que antes fiquem bem claras as condições do contrato. Além de custar um pouco mais caro do que a média dos serviços comuns (ou, pelo menos, do serviço que nos permite arrecadar o dinheiro para pagá-la), essa ajuda exigirá também, de quem quiser recorrer a ela, que tenha algum tempo disponível para, no caso, se sentar numa cadeira e falar. E tal tempo só poderá ser reservado às custas do tempo que tivermos de passar trabalhando e arranjando o dinheiro do pagamento – o que leva a pensar que os custos podem ser, em geral, duplicados para aqueles que, num determinado momento de suas vidas, resolverem procurar um profissional para ajudá-los a reencontrar o caminho da alegria perdida. Trata-se, pois, de uma matemática simples que, evidentemente, não deverá ser calculada com excessivo rigor, para que não se desista com antecipação de recorrer a qualquer adjutório.

 

Mas nem tudo costuma ser assim tão dispendioso para o interessado em resolver o problema da própria felicidade recorrendo a métodos profissionais. No dia-a-dia algumas soluções menos onerosas se apresentarão, tais como apelar para o aconselhamento religioso, consultar o horóscopo ou as conchas ou se valer de outro expediente qualquer que ajude a exorcizar alguns demônios. Uma boa opção é, para quem tem pouco dinheiro, apanhar um livro de auto-aconselhamento e aprender a fazer por si mesmo. Por certo, se esses serviços parecem ser mais baratos, isso não quer dizer que não possam ser eficientes e ter um caráter igualmente profissional em seu devido setor. Além do mais, quem os executa precisa ser remunerado também, e os autores dos livros estão aí para prová-lo: um livro de auto-ajuda que não vendeu no mínimo alguns milhares de exemplares corre um grande risco de não ser levado a sério por ninguém. Para que a ajuda seja eficaz ou, quando menos, confiável, é necessário que ela venha respaldada pela técnica e tenha a sustentação de uma certa tradição. Pode até nem ser o caso dos livros de auto-aconselhamento, que às vezes são escritos por sujeitos de que nunca ouvimos falar e que só se tornam conhecidos depois que passaram a aconselhar e a vender livros. Porém a regra vale no que diz respeito à arrecadação: quanto mais famoso for o livro, e quanto mais bem-sucedido o julgarmos, mais tenderemos a confiar nele (se é que se trata de confiar) e a tirar dele algum proveito.

 

Vender bem é sinal de que as coisas estão bem, e desde já podemos aprender uma lição com os livros de auto-aconselhamento (mesmo sem tê-los estudado profundamente), a ser depreendida da simples leitura dos títulos de alguns deles. Essa lição diz que nenhuma felicidade pode ser alcançada sem que se disponha também de uma boa dose de paciência e perseverança. E paciência e perseverança – qualidades do bom empreendedor, demonstradas até pela paciência com que o escritor se dedicou ao seu trabalho escrevendo o livro em que as aconselha – são as contrapartidas a serem exigidas de quem, uma vez provada a sua disposição de correr no encalço da própria felicidade, não tem mais nenhum minuto a perder com protelações, indolência e baixa auto-estima e quer se lançar de imediato à tarefa. É o que nos dizem os títulos, em que tão freqüentemente aparece escrita a palavra como, a figurar neles como o segredo universal para abrir todas as portas. Porque é de portas mesmo que se trata: de aprender o modo, o método, o como da questão, encontrando finalmente a chave para destrancar a enorme fechadura do futuro. Podemos ficar indiferentes? Se pensarmos que a grande porta do futuro é, na verdade, um portão que abre para uma infinidade de outros cujo número de chaves será proporcional ao número de fechaduras, entenderemos o porquê de serem tão abundantes os temas e os assuntos para o auto-aconselhamento. Há infinitas situações da vida com que teríamos de lidar e que vão desde o convívio doméstico e familiar, passando pelo relacionamento com superiores e clientes, até o trato com os amigos. Um único livro e uma única estratégia talvez não pudessem abranger sequer uma pequena parte dessa vasta variedade. E assim se explica a necessidade recorrente não só de que se amplie a gama de temas, como também de que se escrevam novos livros sobre velhos temas, ou de que um autor escreva diversos livros sobre diversos temas ou sobre um único tema, abordado sob perspectivas diferentes e convergentes, como se avançasse por várias frentes ao mesmo tempo.

 

Pensar que a felicidade possa ser alcançada pelo método – por qualquer método – é já ter dado um relevante passo no sentido de conquistá-la, pois é sobretudo aceitar a afirmação de que tal felicidade é possível e de que está à nossa espera em algum lugar. É com isso, supomos, que contam todos aqueles que saem a campo a oferecer ajuda a quem procura aconselhamento: com o fato de que, em geral, o indivíduo que procura ajuda acredita nela de algum modo ou, antes, acredita que a felicidade – aquele quinhão de felicidade que lhe está reservado em alguma dobra do destino – se escondeu dele num lugar com o qual apenas não atinou ainda. Quando parte à procura dela, ele parte munido de uma esperança secreta da qual ninguém poderia demovê-lo ou da qual ele mesmo não admite ser destituído. E, ao se deparar com o título de um livro (este exercício de psicologia pode parecer primário, mas não seria difícil que as coisas se passassem desta maneira) em que tal esperança se configura numa promessa, uma pequena luz se acende nele intimamente, a renovar-lhe o ânimo para novos empreendimentos. Acenando-lhe com a idéia de que tudo o que precisa fazer é organizar-se, isto é, dividir em partes, analisar, ordenar e relacionar as partes entre si, bem como tirar disso uma espécie de síntese, os autores de livros e todos os demais voluntários da felicidade coletiva se transformam imediatamente em benfeitores cujas palavras agem sobre o ânimo de quem quer escutar (e querer é quase tudo quando essas questões estão em jogo) como uma carga de explosivo. Elas o disparam para alguma coisa, por assim dizer, e quando o disparam ele aprende que uma boa parte de toda a sua infelicidade (ou do que julga ser a sua infelicidade) se deve à sua própria inépcia ou é resultado de sua própria incapacidade para conduzir eficazmente as suas ações, tratando-se então de emendar-se, pôr mãos à obra e corrigir o curso do destino.

 

Não é que mintam neste ponto, como poderiam ser levados a pensar aqueles que desconfiam de tudo. Antes, um bom livro de auto-aconselhamento deve manter-se atrelado à verdade e, ao contrário do que se crê em determinados meios, não deve dizer somente aquilo que queremos ouvir, mas principalmente o que precisamos ouvir. Isso tem a ver com o fato de que, ao dizerem que alguma coisa saiu errada porque não fomos competentes o bastante para fazê-la dar certo, dizem também que a parcela maior da culpa nos compete e que precisamos arregaçar as mangas para consertar a situação. Se ao final da leitura tivermos a impressão de que algum detalhe nos escapou – de que, seja lá o que for que tivermos para fazer, isso está sempre um tanto acima de nossas forças –, teremos tirado pelo menos essa conclusão, que já é suficiente para nos mostrar que não há felicidade sem aplicação e voluntarismo pessoal e que, deixadas à própria sorte, as coisas tendem a degringolar-se e a precipitar-se no pior.

 

É motivo para que nos sintamos culpados? Em princípio, a decisão de procurar a felicidade aplicando algum método não deveria ser motivo para autodepreciações. Pelo contrário: a esperança é, sempre, de que as palavras de aconselhamento produzam efeito positivo sobre nosso estado de ânimo, incitando-nos não tanto à ação, mas a formular sobre a ação alguns pensamentos positivos, que podemos guardar para a hora em que nos resolvermos de fato a agir (assunto que os aconselhadores não podem decidir por nós).

 

Aplicação e método na busca da própria felicidade implica a crença de que o mundo é metódico e de que os eventos que o tempo dá à luz se seguem também metodicamente uns aos outros, bastando apenas entender o modo como isso acontece. Quem não acredita parece condenado ao fracasso. Quem acredita e se aplica dá provas de que os aconselhadores da felicidade ainda hão de ter razão algum dia – levando a crer que na idéia de investir na felicidade devem estar contidos os dois sentidos do verbo investir (e outros que porventura possa ter), conforme a lógica de todos os investimentos e a total falta de lógica da vida.

 

24-12-2005/15-1-2006

 

(Leia também Adendos e Espinhos - livro de crônicas de Renato Suttana)

 

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