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A
FELICIDADE PELO MÉTODO
(Renato
Suttana)
Tentar levar alguém a encontrar a
própria felicidade é uma das tarefas mais difíceis que podemos
empreender. Por isso, quem se dedica a ela quer receber, antes de
tudo, uma boa remuneração. E não estamos falando apenas de
psicanalistas e de outros profissionais do bem-estar público (quem
já teve de recorrer a um saberá do que se trata), que não se
disporão a ajudar ninguém sem que antes fiquem bem claras as
condições do contrato. Além de custar um pouco mais caro do que a
média dos serviços comuns (ou, pelo menos, do serviço que nos
permite arrecadar o dinheiro para pagá-la), essa ajuda exigirá
também, de quem quiser recorrer a ela, que tenha algum tempo
disponível para, no caso, se sentar numa cadeira e falar. E tal
tempo só poderá ser reservado às custas do tempo que tivermos de
passar trabalhando e arranjando o dinheiro do pagamento – o que leva
a pensar que os custos podem ser, em geral, duplicados para aqueles
que, num determinado momento de suas vidas, resolverem procurar um
profissional para ajudá-los a reencontrar o caminho da alegria
perdida. Trata-se, pois, de uma matemática simples que,
evidentemente, não deverá ser calculada com excessivo rigor, para
que não se desista com antecipação de recorrer a qualquer adjutório.
Mas nem tudo costuma ser assim tão
dispendioso para o interessado em resolver o problema da própria
felicidade recorrendo a métodos profissionais. No dia-a-dia algumas
soluções menos onerosas se apresentarão, tais como apelar para o
aconselhamento religioso, consultar o horóscopo ou as conchas ou se
valer de outro expediente qualquer que ajude a exorcizar alguns
demônios. Uma boa opção é, para quem tem pouco dinheiro, apanhar um
livro de auto-aconselhamento e aprender a fazer por si mesmo. Por
certo, se esses serviços parecem ser mais baratos, isso não quer
dizer que não possam ser eficientes e ter um caráter igualmente
profissional em seu devido setor. Além do mais, quem os executa
precisa ser remunerado também, e os autores dos livros estão aí para
prová-lo: um livro de auto-ajuda que não vendeu no mínimo alguns
milhares de exemplares corre um grande risco de não ser levado a
sério por ninguém. Para que a ajuda seja eficaz ou, quando menos,
confiável, é necessário que ela venha respaldada pela técnica e
tenha a sustentação de uma certa tradição. Pode até nem ser o caso
dos livros de auto-aconselhamento, que às vezes são escritos por
sujeitos de que nunca ouvimos falar e que só se tornam conhecidos
depois que passaram a aconselhar e a vender livros. Porém a regra
vale no que diz respeito à arrecadação: quanto mais famoso for o
livro, e quanto mais bem-sucedido o julgarmos, mais tenderemos a
confiar nele (se é que se trata de confiar) e a tirar dele algum
proveito.
Vender bem é sinal de que as coisas
estão bem, e desde já podemos aprender uma lição com os livros de
auto-aconselhamento (mesmo sem tê-los estudado profundamente), a ser
depreendida da simples leitura dos títulos de alguns deles. Essa
lição diz que nenhuma felicidade pode ser alcançada sem que se
disponha também de uma boa dose de paciência e perseverança. E
paciência e perseverança – qualidades do bom empreendedor,
demonstradas até pela paciência com que o escritor se dedicou ao seu
trabalho escrevendo o livro em que as aconselha – são as
contrapartidas a serem exigidas de quem, uma vez provada a sua
disposição de correr no encalço da própria felicidade, não tem mais
nenhum minuto a perder com protelações, indolência e baixa
auto-estima e quer se lançar de imediato à tarefa. É o que nos dizem
os títulos, em que tão freqüentemente aparece escrita a palavra
como, a figurar neles como o segredo universal para abrir todas
as portas. Porque é de portas mesmo que se trata: de aprender o
modo, o método, o como da questão, encontrando finalmente a
chave para destrancar a enorme fechadura do futuro. Podemos ficar
indiferentes? Se pensarmos que a grande porta do futuro é, na
verdade, um portão que abre para uma infinidade de outros cujo
número de chaves será proporcional ao número de fechaduras,
entenderemos o porquê de serem tão abundantes os temas e os assuntos
para o auto-aconselhamento. Há infinitas situações da vida com que
teríamos de lidar e que vão desde o convívio doméstico e familiar,
passando pelo relacionamento com superiores e clientes, até o trato
com os amigos. Um único livro e uma única estratégia talvez não
pudessem abranger sequer uma pequena parte dessa vasta variedade. E
assim se explica a necessidade recorrente não só de que se amplie a
gama de temas, como também de que se escrevam novos livros sobre
velhos temas, ou de que um autor escreva diversos livros sobre
diversos temas ou sobre um único tema, abordado sob perspectivas
diferentes e convergentes, como se avançasse por várias frentes ao
mesmo tempo.
Pensar que a felicidade possa ser
alcançada pelo método – por qualquer método – é já ter dado um
relevante passo no sentido de conquistá-la, pois é sobretudo aceitar
a afirmação de que tal felicidade é possível e de que está à
nossa espera em algum lugar. É com isso, supomos, que contam todos
aqueles que saem a campo a oferecer ajuda a quem procura
aconselhamento: com o fato de que, em geral, o indivíduo que procura
ajuda acredita nela de algum modo ou, antes, acredita que a
felicidade – aquele quinhão de felicidade que lhe está reservado em
alguma dobra do destino – se escondeu dele num lugar com o qual
apenas não atinou ainda. Quando parte à procura dela, ele parte
munido de uma esperança secreta da qual ninguém poderia demovê-lo ou
da qual ele mesmo não admite ser destituído. E, ao se deparar com o
título de um livro (este exercício de psicologia pode parecer
primário, mas não seria difícil que as coisas se passassem desta
maneira) em que tal esperança se configura numa promessa, uma
pequena luz se acende nele intimamente, a renovar-lhe o ânimo para
novos empreendimentos. Acenando-lhe com a idéia de que tudo o que
precisa fazer é organizar-se, isto é, dividir em partes,
analisar, ordenar e relacionar as partes entre si, bem como tirar
disso uma espécie de síntese, os autores de livros e todos os demais
voluntários da felicidade coletiva se transformam imediatamente em
benfeitores cujas palavras agem sobre o ânimo de quem quer escutar
(e querer é quase tudo quando essas questões estão em jogo)
como uma carga de explosivo. Elas o disparam para alguma coisa, por
assim dizer, e quando o disparam ele aprende que uma boa parte de
toda a sua infelicidade (ou do que julga ser a sua infelicidade) se
deve à sua própria inépcia ou é resultado de sua própria
incapacidade para conduzir eficazmente as suas ações, tratando-se
então de emendar-se, pôr mãos à obra e corrigir o curso do destino.
Não é que mintam neste ponto, como
poderiam ser levados a pensar aqueles que desconfiam de tudo. Antes,
um bom livro de auto-aconselhamento deve manter-se atrelado à
verdade e, ao contrário do que se crê em determinados meios, não
deve dizer somente aquilo que queremos ouvir, mas principalmente o
que precisamos ouvir. Isso tem a ver com o fato de que, ao dizerem
que alguma coisa saiu errada porque não fomos competentes o bastante
para fazê-la dar certo, dizem também que a parcela maior da culpa
nos compete e que precisamos arregaçar as mangas para consertar a
situação. Se ao final da leitura tivermos a impressão de que algum
detalhe nos escapou – de que, seja lá o que for que tivermos para
fazer, isso está sempre um tanto acima de nossas forças –, teremos
tirado pelo menos essa conclusão, que já é suficiente para nos
mostrar que não há felicidade sem aplicação e voluntarismo pessoal e
que, deixadas à própria sorte, as coisas tendem a degringolar-se e a
precipitar-se no pior.
É motivo para que nos sintamos culpados?
Em princípio, a decisão de procurar a felicidade aplicando algum
método não deveria ser motivo para autodepreciações. Pelo contrário:
a esperança é, sempre, de que as palavras de aconselhamento produzam
efeito positivo sobre nosso estado de ânimo, incitando-nos não tanto
à ação, mas a formular sobre a ação alguns pensamentos positivos,
que podemos guardar para a hora em que nos resolvermos de fato a
agir (assunto que os aconselhadores não podem decidir por nós).
Aplicação e método na busca da própria
felicidade implica a crença de que o mundo é metódico e de que os
eventos que o tempo dá à luz se seguem também metodicamente uns aos
outros, bastando apenas entender o modo como isso acontece. Quem não
acredita parece condenado ao fracasso. Quem acredita e se aplica dá
provas de que os aconselhadores da felicidade ainda hão de ter razão
algum dia – levando a crer que na idéia de investir na
felicidade devem estar contidos os dois sentidos do verbo
investir (e outros que porventura possa ter), conforme a lógica
de todos os investimentos e a total falta de lógica da vida.
24-12-2005/15-1-2006
(Leia também Adendos e
Espinhos - livro de crônicas de Renato Suttana)
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