POEMAS
(Adelmo
Oliveira)
PRÓLOGO
Abro a boca das palavras
Sou a fala
Sou o grito
Sou um eco de silêncio do infinito
que perturba a razão deste enigma
Abro a boca das palavras
Sou a voz de um planeta aflito
– De carne
– De osso
– De espírito
Espelhos do corpo e da alma
Sou um código que multiplica
estrelas andarilhas
Abro a boca das palavras
Sou mais treva que dia - sou o mito
Sou a multidão que delira
neste imenso palco que gira
entre a volúpia dos sonhos
o terror das máscaras
e o trânsito das coisas vazias
Sou na paisagem veloz
um comboio de vagões
atrás da fantasia
Mas
sentimentos são vísceras
– De cada paixão
– De cada amor
– De cada cicatriz
saltam milhões de travessias
E nem é preciso acordar no céu
os dragões da lua
E nem é preciso carregar na mão
uma flor
Sentimentos são vísceras
– Se caio sobre um lençol de espumas
– me crucifico
– Se mais eu grito - a eternidade me
confina
Enquanto a noite abrir a porteira dos
dias
e pensa o coração
O verso nunca termina
– Da imaginação
nasce o ritmo e a melodia
Poesia – matriz dos sonhos e dos
delírios
– Cálice derramado de vinho
na fronteira da página vazia
Abro a boca das palavras
– Acima ou abaixo dos anéis de Saturno
Do telescópio à periferia
Sentimentos são vísceras
– Trapézio que a emoção trepida
sobre um fio de lâmina
Que equilibra – que equilibra
o impulso trágico da vida
Praia da Aleluia, 19-12-06
Estilete
Os outros
tomaram as minhas mãos
e escreveram por mim
as palavras que nunca proferi
Os outros
furtaram os meus sapatos
e caminharam por lugares
onde nunca andei
Os outros
apontaram a minha cabeça
e publicaram delitos
que jamais cometi
Os outros
cavaleiros da arma branca
arremeteram um punhal
–
estilete maligno
para estiolar o coração
Os outros
ah! os outros são os que por mim passaram
e nem sequer viram
a noite morrer de manhã
nos quintais da minha casa
Soneto
da última estação (Mitologia marinha)
Esta
que vem do mar por entre os ventos,
Sacudindo
as espumas dos cabelos,
Vem
molhada de azul nos pensamentos,
Seu
corpo oculta a ilha dos segredos.
Vem
e dança ao andar sobre as areias
Úmidas
sob os passos e os desejos,
Onde
as ancas são ondas em cadeias
Infinitas
de luz contra os espelhos.
Nem
precisa de flor nem de perfume,
Ela
é a própria essência do ciúme,
Feita
de mito e se fazendo estrela.
Vem
– dança – e passa aos fogos do verão
–
Fantasia da última estação.
Explodiu
na vertigem da beleza.
MEU
NATAL DE SEMPRE
Ficou
na sombra a casa onde morei
As
árvores do quintal, a ventania
E
eu, ainda pequeno me recordo
Quanto
chorei, quando cantar devia
Ficou
no céu o tempo que sonhei
–
Sapato de verniz dependurado
Num
saco bem vazio de esperança
–
Meu barco se perdeu em águas negras
Não
finjo o sonho em que me sustentei
No
portal da janela de meu quarto
–
As bolas de borracha coloridas
–
Revólver de brincar de detetive
Meus
irmãos já tiveram as mesmas coisas
Meus
amigos também o que não tive
–
A vida da presente todo dia
–
A dor que sinto agora não sentia.
Ficou
no rosto o traço que não tinha
–
A solidão que sopra lá de fora
Multiplico
os minutos pelas horas
E
tenho as mesmas horas repartidas
Ganho
então um presente de lembranças
–
Uma flor na lapela e meu cansaço
Costuro
mágoas e as transformo em ânsias
E
corto a fantasia em mil pedaços
SONETO
ANTIGO DA PAIXÃO
Cheguei
depois de mim – era a viagem
Os
pássaros do medo – o fel dos dias
O
enigma encarcerado – as travessias
de
silêncio no vulto desta imagem
toda
sombria friamente lívida
caindo
no mistério – Esta paisagem
noturna
sob a lua era a miragem
de
espectros pelo grito que partia
transverso
da garganta do meu peito
–
guitarras que choravam – Contrafeito
me
enredei no delírio da ilusão
que
apunhalava a dor desta perfídia
ágrafa
da manhã – então morri
–
Vi minha alma sangrando de paixão
FRAGMENTOS
DE UMA CANÇÃO QUE MORRIA
A
efígie apocalíptica do Caos
Dançava
no meu cérebro sombrio
Augusto
dos Anjos
Whith
suth name as “Nevermore”
Edgar
Alan Poe
Altino
Soares
–
O Rio do Ouro secou
Um
galho de pau d´arco arriou
à
beira do caminho
–
Aquela estrada antiga não chegou
até
o Morro da Velha
Meu
pai dizia
–
Menino
as
estrelas variaram no céu
as
veredas já cruzaram o destino
Ainda
ontem
o
relâmpago incendiou o boqueirão do dia
Reduzindo
escarpas de pedra
em
torrão de cinzas
Noite
de breu
um
cargueiro rangia
nas
curvas molhadas dos trilhos
Assustando
o medo de assombração
Nos
esconderijos das Grotas da Guia
Altino
Soares
O
zabelê na tarde cantou onde eu não existia
Longe
nas
travessias do pensamento
Espíritos
da maldição rondavam o Sítio da Finada Gutarda
Onde
cães ferozes
em
vão
latiam
contra a palidez da lua
De
repente
na
Serra do Tombador
um
espantalho jogou os braços pelo vento
–
Um grito partiu ferido
gelado
da
vertigem das alturas
E
caiu
de
queda súbita
Num
poço escuro
de
águas mortas
Depois
Depois
O
silêncio escondeu a solidão
atrás
do Morro da Velha
(Os
espectros são mentiras da realidade
–
A luz da visão confundiu os espelhos
Um
gesto se fez retrato de memória
–
A fantasia interpretou a ilusão)
Altino
Soares
–
O Rio do Ouro secou
O
zabelê na tarde cantou onde eu não existia
–
A loucura riu de mim
Aquela
estrada antiga não chegou
até
o Morro da Velha
NOTURNO
Na
minha cama de menino verde
Na
minha cama de menino verde
Deitado
em coberto de antigo dorme bem
Pelas
coisas que via nos olhos do passado
Aquele
apito surdo de trem
Vinha
montado com esporas agudas de medo
Aquele
apito surdo
era
um pregão da noite
Dentro
gelado
sombras
negras do inverno
Aquele
apito surdo de fogo
e de foice
–
Fantasma parado na estação ferroviária do leste
Dentro
da noite breu
Vinha
montado com esporas agudas de medo
Na
minha cama de menino verde
Na
minha cama de menino verde
Aquele
apito surdo da noite
Chamou
a cidade para dentro do peito
A
ventania de pátinas sacudia ou uivos do telhado
E
a maldição apagou as últimas estrelas
Que
não via
dentro
da alma e do abismo
Aquele
grito de máquinas a ranger de aflito
Vinha
montado com esporas agudas de medo
O
trem queria partir
e não
partia
Era
alguém que partia
e
não sabia
Ruídos
de patas de gato
Unhavam
as sensações do mistério
O
trem fugia de mim
e
não partia
Era
alguém que partia
e
não existia
Talvez
um dragão de visões de lua
Encrespando
o cabelo das rodas do tempo
Aquele
apito noturno do mundo
Vinha
montado com esporas agudas do medo
Na
minha cama de menino verde
Na
minha cama de menino verde
DEVER
DE CASA
Eu
sou um velho ator sem palco e sem platéia
Que
traz no cais do peito antigas ilusões
E
do pouco que sabe interpreta lições
De
palhaço que alegra os meninos da aldeia
Basta
o dia raiar pelas bandas da aurora
–
Levanta – bate a porta – e vai ganhar a rua
–
Tropeça no silêncio em que flutua a Lua
–
Restos de solidão caminhando lá fora
Esqueço
a dor – o espelho – as marcas do meu rosto
–
Produtos do salário em que se paga imposto
Cobrado
pelo tempo e pelas fantasias
Andarilho
do vento atravessando o acaso
Deixo
a tarde no céu – o meu relógio atraso
E
assim faço de mim a profissão dos dias
Nota
biográfica
Adelmo
José de Oliveira nasceu em 13 de maio de 1934, na cidade de
Itabuna, na Bahia. Em 1962, sob um júri formado por nomes de
expressão da literatura brasileira, como Manuel Bandeira, Austregésilo
de Athayde, José Carlos Lisboa e Pio de Los Casares, recebeu o Prêmio
Nacional Luis de Góngora com ensaio “Góngora e o Sofrimento da
Linguagem”. Formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia,
1966, participou do Movimento Cultural baiano escrevendo estudos,
ensaios e poesias para os principais jornais e revistas de Salvador.
Publicou
entre outros títulos: Canto da Hora Indefinida, 1960; Três Poemas,
1966; O Som dos Cavalos Selvagens, 1971; Cântico Para o Deus dos
Ventos e das Águas, 1987; Espelho das Horas, 1991; O Canto Mínimo,
2000, (Antologia Poética) Poemas da Vertigem, 2005. Participou de várias
Antologias Poéticas editadas na Bahia, no Sul do País e no
Exterior. Exerceu atividade política contra a Ditadura Militar,
sendo preso por duas vezes e torturado. Foi eleito Deputado Estadual
à Assembléia Legislativa do Estado
da Bahia pelo antigo MDB em 1978.
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