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ABJURAÇÕES DA TECNOLOGIA
(Renato Suttana)
Ninguém teria coragem de negar, hoje em
dia, que os computadores são ferramentas de grande utilidade nas
vidas das pessoas, mesmo daquelas que nunca viram um. E essa
utilidade, ao que parece, não advém tanto dos serviços que eles
prestam, mas dos que eles ainda podem vir a prestar, tais como
resolver o transtorno das filas dos bancos ou dos supermercados, bem
como outros transtornos que assombram a vida moderna e que,
certamente, algumas cabeças já andarão por aí preocupadas em
resolver. Se esses transtornos só existem porque existem os
computadores ou qualquer outra coisa que necessite deles para
funcionar, isso é assunto para muito bate-boca. Para os entusiastas,
não haveria que discutir: qualquer que seja o futuro do mundo, ele
surge de um chip eletrônico e atravessa uma fibra óptica.
Entretanto, se olharmos de perto, veremos que não é tão simples
assim. O próprio fato de que existam chips eletrônicos e fibras
ópticas já é motivo de grande aborrecimento, e não só porque muita
gente não sabe ainda o que é isso, mas porque um dia teremos de
aprender ou, pelo menos, teremos de tropeçar neles – nos chips e nas
fibras ópticas – em algum momento de nossas vidas, sendo os
resultados de tal tropeção (que pode vir a ser uma cabeçada, a
depender do modo como se tente passar) bastante imprevisíveis.
Podemos imaginar, ao menos, que sobreviveremos ao confronto – se é
que se trata de um?
Muita gente dorme tranqüila, calculando
que, qualquer que seja a época em que tenhamos de nos haver com
semelhantes maravilhas, essa época está distante o suficiente para
ainda permitir uma boa noite de sono. Só aqueles que não podem ir
para a cama sem antes terem resolvido em seus cérebros todas as
questões – mesmo as que não têm solução – é que se preocupam. Para
esses, o futuro (qualquer que seja ele) já está à porta, a bater e a
pedir passagem, como se diz na linguagem da propaganda. Se os
computadores existem – podemos pensar – e se existem pessoas que
usam computadores, então alguma coisa de muito preocupante deve
estar a caminho. Basta ir a um banco, para se ter uma idéia. Quem
nunca teve oportunidade de ver alguém se atrapalhar todo diante de
uma daquelas máquinas que os bancos deixam à disposição das pessoas,
para que realizem tarefas de interesse pessoal que, antigamente,
havia sempre um funcionário para realizar por elas? Então, pelo
menos nesse setor, uma conclusão bastante exata se poderia tirar.
Ali onde a tecnologia se insinuou para resolver um problema da vida
diária, um novo problema surgiu. E as filas em que antigamente se
tinha de gastar o tempo até que o funcionário consultasse fichários
e fizesse anotações em papeletas hoje se transformaram em filas em
que se tem de aguardar até que o funcionário digite imensos códigos
diante de uma tela de computador, que parece capaz de prover tudo
menos velocidade, acrescidas de filas em que se tem de aguardar até
que as pessoas comecem a entender o que quer que seja a lógica das
máquinas ou, o que é um triste consolo, até que desistam e cedam seu
lugar ao próximo interessado. Em todos os casos, como em certas leis
da ciência, o volume de problemas cresce numa proporção direta com o
das soluções, num equilíbrio perfeito, enquanto continuamos a
patinar (nós também) numa esperança feliz de que isso um dia venha a
ser diferente.
Houve um tempo em que as coisas não eram
assim. Viagens, por exemplo, fosse de uma cidade para a outra dentro
de um mesmo país ou de um país para o país vizinho, tinham de ser
feitas com paciência e planejadas com alguma antecipação. Usava-se
até, para expressar o fastio e o longo desconforto dessas aventuras,
a expressão “em lombo de cavalo”, que já dizia tudo a respeito de
viajar naqueles tempos. Atravessar o país em lombo de cavalo (ou de
outros bichos da mesma família) tomava o aspecto de uma experiência
mística: quem se dispunha a fazê-lo precisaria ter consciência
daquilo em que estava se metendo, porque uma vez começada a viagem
tão cedo não haveria como terminá-la. Comparadas às facilidades
atuais, essas verdadeiras jornadas (expressão que as define bem,
embora imperfeitamente) chegam a nos parecer coisa de sonho. E mal
podemos imaginar que, para conquistar os seus impérios, um César ou
um Alexandre tiveram de o fazer em lombo de cavalo. De Roma aos
cafundós da Gália, ou de Atenas às fímbrias do deserto da Mongólia?
Não havia outro modo – e dizem que Gengis Khan até dormia sobre o
lombo do seu. Eram tempos, também, em que a paciência parecia ser
tanto maior e mais bem distribuída quanto maiores fossem as
distâncias a atravessar, e ninguém jamais sonharia em ir de Londres
a Constantinopla em menos de vinte e quatro horas. Vivia-se melhor
dessa maneira? Provavelmente não, mas pelo menos havia mais tempo
para apreciar a paisagem, o que não é possível nos nossos dias, a
não ser muito imperfeitamente, espiando da janela de um avião ou de
um automóvel, como quem procura a barraca de cebolas enquanto a
feira vai sendo desmontada. Se antigamente, antes de percorrer os
dois mil quilômetros que separam duas cidades, um indivíduo tinha de
saber muito bem o que estava indo fazer em seu lugar de destino,
hoje é possível sair pela manhã, não fazer nada lá ou mudar de idéia
e ainda retornar para o almoço. Cresceram as vantagens? De certo
modo, pelo menos neste aspecto, a tecnologia traz uma vantagem que
ninguém negará: as facilidades de locomoção proporcionam mais tempo
livre para quem viaja – tempo que pode ser empregado planejando
outras viagens, conforme também acontece em outros setores da vida.
Uma pessoa que compra uma máquina
moderna de processar alimentos sabe exatamente o que quer: livrar-se
do incômodo e do aborrecimento de ter de fazer tudo manualmente. E o
que fará em seguida, depois que o incômodo tiver sido contornado?
Seria injusto, acreditamos, pensar que se utilize tal máquina apenas
para atrofiar as próprias habilidades motoras. (Evidentemente já
existem máquinas que ajudam a recuperar capacidades que outras
máquinas nos fizeram perder, como as esteiras elétricas que permitem
praticar um tipo de exercício físico que o automóvel ou mesmo os
processadores de alimentos nos dispensam de praticar, mas isto seria
outro assunto.) A idéia é que o tempo economizado seja empregado em
atividades mais interessantes ou até mesmo em nenhuma atividade.
Neste caso, poderíamos pensar, numa hipótese ruim, que os
desenvolvedores de tecnologia estão mesmo empenhados em nos colocar
de frente para o tédio da vida. Se não for isso, ajudando-nos a
poupar tempo, ajudam-nos a poupá-lo para que o empreguemos naquelas
ocupações que realmente importam – as quais, por certo, não se
reduzirão apenas a utilizar outras máquinas ou a gozar das
comodidades que só essas máquinas proporcionam. Como se nos
dissessem: “Agora que pouparam tempo, aprendam a utilizá-lo em
alguma coisa”, nos dão uma espécie de responsabilidade didática
diante da vida que só mesmo quem aprendeu a ganhar tempo com um
processador de alimentos saberá o que é. Fazem-nos compreender que,
muito mais do que passar o tempo inteiramente ocupados, podemos
passá-lo oscilando entre ocupações ou tentando descobrir quais
aquelas que nos interessam e que por sua vez nos obrigarão depois a
encontrar algum modo de poupar tempo para nos dedicarmos a elas.
Evidentemente, um indivíduo que tiver de
enfrentar uma boa fila em alguma agência bancária terá bastante
tempo para pensar em tudo isso, a não ser que esteja por demais
ocupado realizando cálculos mentais ou falando a um telefone
celular. Neste ponto, as inovações tecnológicas revelam um de seus
aspectos peculiares. Ao mesmo tempo em que nos propõem a
possibilidade de sairmos à caça de uma felicidade cuja promessa é
sempre renovada a cada novo mecanismo, processo ou simples avanço
técnico que se põe à nossa disposição nas prateleiras de uma loja,
têm também a capacidade de elidi-la sutilmente, lançando-a para
diante como um balão de ar que se torna mais difícil de pegar quanto
maior e mais cheio vai ficando. Impondo um novo tipo de relação da
consciência com o tempo, forçam-nos sobretudo a descobrir que esse
tempo se tornou cada vez mais impalpável, mais fluido e
escorregadio, e que sem dúvida precisamos de muitas máquinas para
mantê-lo sob controle. Nos dias de hoje, não é somente a novidade
que importa, ou o problema que venha a resolver, mas a nossa
capacidade de nos adaptarmos a ela, de a introduzirmos em nossas
vidas. Podemos ficar indiferentes? Quem já tiver alguma vez pensado
nessa possibilidade – da indiferença – terá experimentado a seguinte
sensação: a de que ficamos para trás, de que somos logrados, de
algum modo, em nosso mais que humano direito de participar. Brincar
com aquele jogo eletrônico, correr naquele carro ou assistir a um
filme qualquer naquele aparelho de televisão – quem se pode privar
de tudo isso sem um sentimento de logro? Como crianças soltas num
parque de diversões, que querem subir em todos os brinquedos e ser
atiradas de cá para lá até mesmo naqueles mais apavorantes, não
podemos ficar inertes. A necessidade e a urgência de agarrar uma
nesga de tempo estarão sempre em nossos calcanhares – e serão tão
mais prementes quanto mais fluido e esquivo for aquilo que se quiser
agarrar.
Não estamos a propor que o melhor seria
voltar aos fichários manuais ou às velhas máquinas de escrever, como
fazem os nostálgicos dos bons tempos, dos quais não há razão nenhuma
para sentir saudades. A nostalgia aqui significaria apenas rendição,
e se trata de caminhar para diante, com a testa erguida e os olhos
fixos no futuro, sem temer as surpresas. Por que ter medo do que só
veio para ajudar? Ora, muita gente pensaria que, dadas as
desvantagens de um mundo cada vez mais infestado de máquinas, o
melhor seria ficarmos onde estamos, sem desejarmos mais do que já
temos. Os mais pessimistas até diriam que não está distante o tempo
em que, saturados de maquinismos e processos, nos tornaremos tão
ineptos e ineficazes que teremos de conceder a eles – aos
maquinismos – título de cidadania e carteira de identidade. Isso é
tema para filmes de ficção científica. De nossa parte, pensaríamos
apenas que, se o que a tecnologia nos tira está numa proporção
direta com aquilo que nos dá, o medo do futuro não é senão um
subproduto, que muito bem poderia ser tratado com remédios e
ansiolíticos. Afinal, não está aí um vasto campo para pesquisas e
espetaculares inovações com as quais ainda sequer chegamos a sonhar?
Um futuro em que realmente se poderia
viver não deveria se anunciado apenas por coisas como
antidepressivos, mas deveria suprir nossas ansiedades, resolvendo
para nós problemas até hoje insolucionados, como o de saber qual a
proporção real que existe entre o tempo gasto numa ligação
telefônica e o custo dela, ou por que as comodidades do correio
eletrônico trouxeram em seu rastro a proliferação da propaganda
espúria, dos vírus de computador e das mensagens anônimas. Isso nos
ajudaria a compreender que o tempo que a tecnologia nos ajuda a
poupar é, de fato, um tempo que poupamos e, não, apenas, uma mera
ficção. E ficaríamos confortados em pensar que, no fim, todo esse
esforço da paciência, dos nervos e do cérebro valeu a pena. Seria um
futuro em que o entusiasmo pela novidade traria, de fato, algum
benefício para quem sempre – e honestamente – se entusiasmou com ela
e por ela torceu.
dezembro/2005
(Leia também Adendos e
Espinhos - livro de crônicas de Renato Suttana) |