Poemas
de Amadeu Baptista
PORTALEGRE,
CASA DE JOSÉ RÉGIO
dou
três passos em direcção
à
casa e fico muito perto da sagacidade.
nada
do que vejo é verdadeiro.
estas
escadas não existem, esta sombra,
a
mulher no quadro surpreendentemente
azul,
o friso com ramagens e pássaros,
a
destruição do silêncio, a névoa.
tudo
em volta é, apenas, mediação,
um
artifício para a ilusão e o conflito,
a
porta entreaberta para lado nenhum
e
nenhum sítio, a morte que se aproxima,
com
a penumbra branca a desenhar os lábios,
a
pálpebra, a palidez. o gesto desenvolve-se, separa. aqui, ali, este
homem
é
uma representação, um ciclo sob o vento,
a
alma arde-lhe nas têmporas, com insistência
arde,
no
rumo da razão de empédocles em que se diz
“das
coisas mortais não há criação”.
mas
há aves no corpo, este corpo
translúcido
que sobre a cómoda entretece
um
modo reflexivo e imanente, correndo
para
sempre com um breve fumo fulvo
ao
longe, a arrastar o abismo para a planície imensa, a arder, a arder
pelo oposto
e
a envolvência,
na
crua simetria da escada, a memória
onde
a mudança se abre ao inaudito,
a
deus, ao demónio, à casa breve e anómala.
tudo
foi inevitável aqui, a mão
prendeu
o fio narrativo, o verso e o reverso
do
destino, o homem no caminho
entre
a sala e o quarto, a ver o incêndio
ampliar-se,
a
ver a rua retroceder, com um sentido
de
brilho e possessão que não é deste mundo.
esta
colcha brevíssima, o anjo sobre o leito,
a
jarra nacarada sobre o contador castanho,
o
veio na madeira, a pequena luz sob o tapete,
a
varanda e o diminuto alpendre, a parede
de
água em que desliza um possessivo veludo,
o
cristo no desvão, com a cabeça
pendente
sobre o peito, dão ao olhar a pura brevidade, a pura rendição,
enquanto ninguém dorme. maravilhoso e fugaz é o lugar
da
sabedoria,
o
homem cresce na escuridão, cresce
como
uma constelação, um fio de vinagre
na
boca, um certo amor perdido, enquanto
a
palavra descreve, dispara um perímetro
longínquo
e
eu cresço e diminuo, aqui, à porta desta casa,
a
pedir um ponto de ruptura em tudo isto,
uma
curva na estrada que volte ao corredor onde se inscreve a mancha de
humidade
que
explica tudo e nada é, ou foi, e pode já
ser tudo.
mais
um passo e poderei gritar, mais um passo
e
poderei dizer que vim aqui por nada,
estava
a esteva no exterior e entrei
para
transfigurar o real, este dia de chuva
no
espírito, a serrania em volta, a experiência
insaciável
do auspício, a casa, a noite,
a
casa, sempre,
onde
cada derrocada faz prevalecer
o
contágio das vozes, a curvatura do arcos,
o
telhado, a janela, os múltiplos estuários
em
que os clarões se alicerçam, e os poemas,
certas
construções a caminho das nuvens.
no
livro vi a primeira dúvida, a rasura
crescente,
em outra casa. aqui, a sós,
induzo-me
a idêntica explicação, a tosse
na
garganta, o doloroso carrego, o dedo
de
um pronunciamento a alongar-se
sobre
as espáduas, a replicar
à
saudade uma luz obscura, com negros
contrastantes,
como num sonho mau,
tenso,
tenaz. anoitece em mim
como
pode ter anoitecido na alma
deste
homem, talvez o mar tenha este efeito demolidor, o mar ou a sua ausência.
percorro
a casa e pronuncio silêncios estreitos, sempre encontro o coração
noutro lugar,
em
chamas,
o
coração que não vai por aí, o chão
de
sulcos e rastros, onde o pó intratável
não
retrocede nos séculos, há-de conter
esta
aparição repentina, este rumor
de
estações insuspeitas, queda a queda, grumo
a
grumo,
numa
cidade tão improvável como um poeta,
sendo
nós quem somos, filhos de retratos
insuspeitos
em que nem a claridade toca,
nem
a claridade consegue dessangrar.
aqui
viveu o homem
que
todas as ressonâncias confirmam
como
um ser desolado, floresce no inverno
este
constrangimento, dou um passo, outro,
sigo
este percurso de volumetrias áridas
e
rápidas ascensões e prometo-me não voltar,
prometo-me
ficar nesta casa para sempre,
até
que alguém chegue e me desperte. assim,
a
têmpera e a sanguínea retomarão o nome
desta
ausência, este homem flui
sobre
o passado, volta comigo à pedra, à praia,
embora
nestes sinais desconhecidos seja rasa
a
euforia, a disforia,
cada
um dos capítulos desta nave. por isso,
não
me creias. já nada há para crer,
tudo
é um vazio sem retorno
desde
que te deixei ou este homem abandonou
a
minha infância, sempre o li com a certeza
de
um mistério anterior a nós, o mistério
que,
muito provavelmente, nos fez reconhecer
a
amplitude da dor, a vida passada
que
vivemos sem que sequer o suspeitássemos,
a
ave, a ave de sempre,
no
meu e no teu sortilégio desabrido.
A
NOITE DE PAVESE
Raras
vezes me franquearam a porta
e
deixaram entrar. A febre
sitia-me
a alma e quem me vê
assusta-se
do aspecto do meu rosto,
esta
barba por fazer onde um rouxinol
se
esconde. E mais ainda assusta
a
minha altura, este lugar de vertigem
e
palavras poderosas, a presença
de
ilimitados segredos que ninguém quer conhecer, o estremecimento que
corre
nos
meus ombros. Embora nada peça, sabem que sou um pedinte. E quando
entro nas casas os meus gestos afeiçoam-se a alguma coisa enigmática
que contorna o pavor e o entrega
por
não se saber que espécie de vida
ou
de morte vem comigo. Obviamente, eu abençoo quem me deixa entrar,
dou a entender
que
alguma coisa brilha nas minhas mãos
e
posso matar a fome com uma ou outra palavra próxima do amor, um
dedo nos cabelos
de
quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa em silêncio
e em silêncio aceitei
que
me aguardassem com as inefáveis sombras que vejo nos outros e tento
decifrar para meu contentamento. Mandaram-me sentar
e
deram-me de beber. Esse álcool
reconfortou-me
a alma. E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo e nítido,
observando a mulher nesse sem fim das coisas, onde todos os mistérios
avançam
para
uma explicação que a qualquer momento pode irromper do espírito
como uma explosão.
Olho-te
nos olhos e recebo as duas moedas
que
me ofereces, o teu rosto é-me familiar
se
recuar à infância e subitamente perceber
que
também pertenci ao exercício desta árvore
que
nesta sala se levanta. Em frente,
na
fotografia que o meu olhar alcança
porque
me alcança o olhar que dela
se
desprende, inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar, mais que um
rumor ou um fio ténue com o nome de todas as coisas inesperadas que
me aconteceram na vida, sempre que me franquearam a porta e deixaram
entrar. Agora, com a memória de ter estado
em
tua casa e ter recebido a graça de alguma atenção, eu, que sou
pedinte embora nada peça,
entrego-te
este sulco da desordem
sobre
a página em branco e agradeço-te
com
o conhecimento de um outro mundo
ainda
mais inexplicável. Não tendo havido despedida, sabe que permaneço
e
na encruzilhada das dores que me couberam viver não esquecerei o
teu nome no dia
em
que também tiver partido
e
mais nenhuma luz houver além daquela
que
ilumina o teu rosto na solidão da noite.
Os
anjos esperam-me. Não me é possível demorar. Que me seja a alba a
tua tolerância.
BILLIE
HOLIDAY: SOLO
Não
tenho mais visões, não tenho obsessões,
sigo
a trompete apenas, a ternura
é
esse outro lado das coisas em que me perco
porque
nada mais me chama e nada mais
revejo
no lentíssimo torpor que pelas veias
senti
outrora num azul imenso
que
mais do que tocar-me me esvaía
no
inferno do mundo e em seus ramais
de
pura nostalgia, tristeza e desencanto.
Só
ergo agora a voz para esquecer
e
ter o olhar toldado para as coisas
que
como grito lancinante escuto no silêncio
enquanto
outras vozes me chamam,
outros
indícios me vêm perturbar
quando
pressinto a noite antíquissima
em
que se esconde o sobressalto da serenidade do meu tempo. Nem já a
sombra aguardo
ou
o sentido destes brilhos espessos,
estas
chamas que consomem o meu corpo
e
a minha alma no mistério de tudo
e
no liminar enigma que adensa nos outros
os
sentidos, certa atenção venal, um desespero
que
em fumos e rastros me pergunta
por
esta vida que já não é minha
e
no coração recebo como salvação e ruína.
Sigo
a trompete, o subtil sinal da despedida.
Só
ergo agora a voz para esquecer.
INTERVALO
PARA LEONARD COHEN
E
o mistério? Ainda transfiguramos
o
mistério no rastro inacessível da verdade,
ainda
trocamos o crepúsculo por outra linha fugaz no horizonte ígneo? A
sombra fugitiva
que
habita o nosso corpo, a alma,
a
insegura alma de existirmos?
Nascem
e morrem, as cidades,
sucedem-se
os dias, as estações, os anos,
esfuma-se
o tempo, foge entre os dedos a vida
que
nos religa à fuga uma outra vez ainda,
a
solidão ameaça, procura-nos a morte
com
o medo de querermos instintivamente resistir, a verdade efémera, o
amor.
Outro
cigarro?
Outro
mistério, ainda,
na
auréola de fumo sobre as cabeças
-
e o mistério, a que devastação conclama?
O
destino das coisas, o mundo de instantes
à
deriva?
FRIDA
KAHLO
E
OS DESENHOS DO MUNDO
Creio
que a adolescência tocou o teu rosto
para
fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo
surpreendente
como
os cabelos deslizam para a brancura
são
a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um
pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa
uma
cidade para se perder no instante
de
uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das
coisas para extrair do passado
uma
medida de ferro, um fio de oiro,
um
pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um
dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe
para
os ombros como o frágil ramo
de
uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre
a transparência para identificar o anjo
que
te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a
infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos
silêncios para resistir ao assédio
das
pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a
tempestade triunfou
sobre
a tempestade e a memória entregou
o
resgate de não haver resgate.
Deste
lugar te avisto e avisto o mar,
esta
passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite,
os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz
explodir em fragmentos translúcidos
onde
se inscreve a mensagem,
uma
última notícia do paraíso perdido
em
que um traço de luz corresponde
ao
augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e
separa, a palavra onde o deslumbramento
é
um labirinto que pela alucinação
percorremos
no incontornável fulgor
de
um momento perpétuo.
O
autor - Nasceu
no Porto (1953) e vive em Lisboa. Escreveu, entre outros,
“Passagens secretas”, “Arte do regresso”, “O claro
interior”. Traduzido em francês, inglês, italiano, hebraico,
romeno, espanhol e holandês.
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