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A AFLIÇÃO DE
INTERPRETAR
(Renato Suttana)
A ilusão de que podemos explicar a poesia, quando nem a
nós mesmos ela se explica. Eis uma constante em nossa
relação com essa modalidade fascinante de uso
das palavras: a ilusão de que podemos torná-la clara,
quando em verdade ela é a voz da mais profunda
obscuridade, derivada da própria fascinação.
Assim somos e assim procedemos, porque não podemos
desistir da tentativa de explicar. Parece fazer parte da
experiência de ler poesia um certo apelo ao emprego da
linguagem, que em algumas instâncias se manifesta como
tentativa de explicação. E a tentativa de explicar é uma
reação da inteligência perante o fascínio que desperta,
nela, a presença do objeto fascinante ou, antes, o mero
contato com esse objeto. Explicamos, porque não podemos
sair do círculo da fascinação. Mas é a fascinação que
nos impede de explicar, e não a ignorância, ou a
incapacidade de compreender. Quando saímos do círculo,
isto é, quando pomos de parte o poema e voltamos a nos
dedicar às atividades corriqueiras da vida, não é que se
resolva em nós a necessidade ou o impulso de explicar o
que quer que seja, mas ocorre que o esquecimento — o pôr
de parte o objeto fascinante — nos alivia do fardo e nos
coloca de novo à disposição para ouvir os demais apelos
do mundo.
A poesia não se resolve pela explicação e pela
compreensão — todos sabemos —, mas é pelo esquecimento
que retorna ao espaço da neutralidade. Esquecer é não
sofrer mais a necessidade de explicar: é poder continuar
vivendo e levando a vida como se não houvesse tal
necessidade (que é provável que nem exista como um fato
do mundo, podendo ser apenas um dos efeitos da poesia —
o desejo de esclarecê-la, de revelar o seu mistério à
luz do dia — ou do fascínio que suscita). E, no final,
onde nada se esclarece e onde nada se resolve, tudo
retorna à obscuridade: o mundo se recompõe como enigma,
e a poesia, que é o enigma por excelência, volta a se
fechar no círculo do fascínio.
Viver é, sempre, cair no esquecimento, mas é,
principalmente, retornar à obscuridade. A poesia é
obscura não porque usa uma linguagem obscura, mas porque
o que ela diz é a obscuridade. E, para dizer a
obscuridade, ela precisa suscitar o contato, precisa
manifestar-se na linguagem como uma abertura. Tal
abertura não é uma passagem para a claridade, não é,
portanto, uma explicação (um esclarecimento de conteúdos
embutidos na mensagem poética que apontem para uma
realidade do mundo preexistente ao poema). É, antes, a
paradoxal iluminação daquilo que, na abertura, se
manifesta como obscuridade.
Por outras palavras, a poesia
“lança luz” sobre a obscuridade, tornando visível a
obscuridade num universo de experiência onde reinam, em
geral, a absorção da mente nos assuntos (e na claridade)
do mundo e também o esquecimento. Se a poesia nos abre
para a obscuridade, é porque nos tira, por um momento,
do esquecimento. Assim, quando tentamos explicá-la,
tentamos recompor ou reconstituir o véu do esquecimento:
queremos retornar ao nosso estado normal ou à nossa
condição cotidiana de seres apoéticos de que só a poesia
é capaz de nos fazer despertar.
O esquecimento é necessário para que o mundo se refaça
como tal. E a poesia é um constante despertar e um
constante recair no esquecimento.
Janeiro de 2017
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